PASSEIO NOTURNO - 2a e última parte >> Zoraya Cesar
Saímos. Caminhávamos devagar, para que eu apreciasse a natureza. Não. Mentira. Meu sobrepeso e sedentarismo impediam-me de andar lépido e fagueiro. Se me apressasse era capaz de enfartar na metade do caminho.
Creio que o Sr. Vilkolakis estava acostumado a turistas lerdos como eu, pois cadenciou seu passo ao meu ritmo e pôs-se a contar histórias da terra de seus antepassados. Falou sobre pequenos seres que comiam luz e regurgitavam ouro; aranhas sugadoras de sorte; plantas falantes que jogavam feitiços. Sou homem urbano, essas crendices populares nunca me atraíram. Na primeira oportunidade, pedi-lhe que falasse sobre as ruínas que tão estranho fascínio exerceram sobre mim.
Ele pareceu contente com a pergunta.
- Os antepassados lituanos que migraram para cá trouxeram pedras de um templo que havia nos arredores de nossa aldeia original, e construíram essa estrutura que o senhor vê hoje.
- Por quê?
- Porque quem naquele templo entrasse teria seus pedidos atendidos. Dinheiro, saúde, amor, vingança, morte de inimigos, chuvas, boa colheita, qualquer coisa.
- E as pessoas acreditavam? – desdenhei.
- Acreditavam porque funcionava. Mas existiam regras. A jornada deveria ser iniciada apenas quando a lua cheia estivesse alta no céu (como fizemos hoje, acrescentou). O caminho era perigoso. Pântanos, crateras, plantas que matavam só de encostar na pele, mosquitos cuja picada apodrecia a carne. Quem chegasse incólume, tinha o direito de fazer seu pedido.
- Só isso? – não contive uma certa ironia em minha voz. Era muita superstição pra minha mente racional.
- Não exatamente. Ainda havia um detalhe. Pequeno. - Ele riu um riso rouco, quase uma tosse. Deve ser o cigarro, pensei.
- Era necessário chegar antes da meia-noite e ficar no templo até o amanhecer. As regras devem ser seguidas.
- Ou o quê? - Eu estava achando graça naquele crendice toda.
- Os lobos ficavam com os mal sucedidos. Homens são gananciosos. Na aldeia, cada vez mais pessoas se arriscavam a chegar ao templo, e, naturalmente, cada vez menos delas voltavam. Foi uma boa época.
Não compreendi o que ele quis dizer com aquilo, e confesso que não tive vontade de perguntar. Tenho um medo inexplicável de lobos. Tentei mudar de assunto.
- E por que migraram, Sr. Vilkolakis?
Ele não respondeu. Senti pena do velho. Devia estar cansado; afinal, por rijo que fosse, a caminhada era árdua. Havia muitas pedras soltas, depressões de solo, raízes que dificultavam o caminhar. De vez em quando, uma ribanceira aparecia subitamente, como uma boca escancarada e faminta.
Comecei a ter pena de mim, também. Suava profusamente; minhas pernas, desacostumadas a tanto esforço, tremiam; meu pé doía levemente, após um passo em falso; eu já não ofegava, mas resfolegava, qual um cavalo velho e doente. Pensei em desistir, mas seria muita humilhação.
De repente, ele voltou a falar:
- Há coisas que devem ser esquecidas. Mas o sangue é mais forte que o tempo, e essas mesmas coisas acompanham todas as gerações – disse, enigmaticamente. Nem tentei entender. Aquela gente do interior era muito esquisita.
- Veja, estamos chegando.
Olhei para as ruínas. À luz da lua, branca como um osso descarnado, pareceram-me grandes lápides de um cemitério esquecido e maldito. Notei algo estranho. Tudo em volta estava quieto. Não se ouvia qualquer dos sons comuns à natureza: insetos, sapos, pássaros, nada.
- Quer voltar? Tenho de perguntar, é a regra. Se você quiser voltar daqui, sou obrigado a levá-lo de volta em segurança.
Voltar? Depois de tanto sacrifício? Já quase lá? Não. Iria até o fim. Que cara doido. Eu o contratei para que ele me levasse e trouxesse em segurança. Não é?
- Nesse caso, sugiro que você alcance o templo nos próximos cinco minutos, e espere lá até o amanhecer – sua voz soava quase gentil – tenho de avisar, são as regras.
As ruínas estavam numa pequena elevação de pedras soltas, e não tão perto assim. Com a dor que estava sentindo – não só no meu pé machucado, mas no corpo todo - eu demoraria mais de 10 minutos para chegar.
- Sugiro que você se apresse.
Sua voz saiu feito um grunhido gutural, como um animal asmático. Olhei para ele. Meu coração falhou algumas batidas.
Uivou longa e prazerosamente, dando-me arrepios de pavor. A criatura era e não era o Sr. Vilkolakis. |
Vi uma criatura de pernas musculosas, a face afilada como um focinho – parecia um enorme cão sobre as patas traseiras. Seus olhos amarelados e brilhantes fixaram-se em mim e a criatura rosnou, deixando à mostra grandes presas pontiagudas. Era o Sr. Vilkolakis e ao mesmo tempo não era. Levantou a cabeçorra e uivou longa e profundamente, num frêmito típico do gozo que precede a caça.
Minha boca se encheu de saliva ácida e gosmenta; calafrios gélidos me estremeciam o corpo. Pensei que fosse desmaiar de horror. Gritei por socorro, mas de minha garganta saiu apenas um balido trêmulo e esganiçado. Tinha de chegar às ruínas. Dei um primeiro passo, titubeante, uma dor lancinante subindo do meu pé até a alma, os olhos esgazeados de um carneiro que sabe estar caminhando para o abatedouro.
- Corre – rosnou a voz do Sr. Vilkolakis.
Imagem: RaphaelaFotografie - Pixabay
Comentários
a) pela precisão da narrativa;
b) pelo interesse despertado neste leitor:
c) pela ousadia de atribuir à imaginação do leitor o desfecho de SUA história.
Muito bom, como de costume.
E não é fácil manter o hábito de surpreender.
Anônimo 1 - hahah, acho que não acabou na melhor parte não mas na pior!
Unknown - Aprendi a contar sim! Mas não tive coragem de ver o que aconteceu com o coitado. Até porque a história terminou sim. E você sabe o final...
Jorge Q - talvez você tenha descoberto o final. Será?
Clarisse! - hhahaha, vc entrou na clima kkk
Macio - sem palavras pra agradecer.
Pra que ter que dizer Tudo?
Muito bem, Zoraya, por deixar algo - como um petisco - para o leitor.