EU BEBIA DIARIAMENTE O MAR, E MAIS ALGUMAS COISAS... >> Sergio Geia
Voltei de Ubatuba mais gordo. Se o Carlos da
farmácia me visse caminhando pela rua depois dessas férias na praia certamente
diria: “Lá vai a jiboia esmoer. Um dia esse cara estoura”. Não estourei; ainda.
Uma costela bem-servida na Casa do Norte, um peixe levemente picante no Canele,
pedaços de pizzas aos montes na Pizzaria São Paulo e na Caravelas, cerveja,
cachaça e beliscos no Saraiva.
Tanta gulodice me fez engordar, e me fez lembrar
o outro Carlos, também da farmácia, e esse primeiro parágrafo de “O
Crime do Padre Amaro”, livro fabuloso do Eça de Queiroz:
“Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria
que o pároco da Sé, José Migueis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia.
O pároco era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano
pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares de sua voracidade.
O Carlos da botica — que o detestava — costumava dizer, sempre que o via sair
da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado: ‘Lá vai a jiboia
esmoer. Um dia estoura!’ Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe.”
Mas não foi apenas a comilança na praia que me
trouxe à mente o romance português. No livro de Eça há diversas passagens em
que o escritor nos remete aos banhos de mar, como nas páginas 34: “A senhora D.
Maria da Assunção, que tinha uma casa na praia da Vieira, propôs levar a S.
Joaneira e Amélia para a estação dos banhos, para ela espalhar, nos bons ares
saudáveis, um lugar diferente, aquela dor”; 81: “(...) ir mesmo no verão aos
banhos...”; 169: “E daí a dias, o cônego, vendo aproximar-se o fim de agosto,
falou de alugar casa na Vieira, como costumava um ano sim outro não, para tomar
os seus banhos de mar. O ano passado não fora. Este era o ano de praia”, “O
quê! Ir enterrar-se todo o verão, o melhor tempo do ano, na Ricoça! E os seus banhos,
meu Deus, os seus banhos?”; 171: “Eu não posso ir; tenho de tomar os meus
banhos, a senhora bem sabe”; 184: “O padre-mestre já tinha quinze banhos”; 193:
“E a mamã passa bem — disse ele a Amélia. — Já tem os seus trinta banhos”; 196:
“Era o cônego, que escrevia da Vieira, dizendo ‘que a S. Joaneira tinha já
trinta banhos e queria voltar!’” .
Não sei se era ou se é um costume dos
portugueses, mas não deixa de ser interessante a forma como os personagens se
referem aos banhos de mar; além de recreativo e terapêutico, os banhos ganham a
conotação de medida de tempo — o tempo não é medido pela quantidade de dias na
costa, mas pela quantidade de banhos tomados.
Clarice Lispector, ainda menina, quando morava no
Recife, diariamente pegava o bonde até Olinda para iniciar o dia tomando banho de mar. Era mania do seu pai. Ele acreditava que todos os anos
se devia fazer uma cura de banhos de mar. Dizia que não se devia logo depois,
tomar banho de água doce; o mar devia ficar na pele por algumas horas. E só
mesmo Clarice ao dizer numa crônica isto: “Com as mãos em concha, eu as
mergulhava nas águas e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia
diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.”
No fundo, acho que o pai de Clarice está cheio
de razão. O mar, que é a expressão mais pura do poder da
natureza, compartilha de graça a sua força com aquele que se atreve a
beber de sua água e se unir a ele. Foi com esse espírito que desci a serra nesse
verão. E embora tenha voltado como uma jiboia, fui aos banhos, contei uns
trinta, e cá estou pronto pra entrar de novo nessa
confusão chamada vida.
Ilustração: cuidarmais.wordpress.com
Comentários
Ubatuba e comilanças é memória de infância
Quero morrer perto do mar.
Sérgio, perdão, só vi a mim mesma.Gratidão.