CASA PRÓPRIA >> Carla Dias >>


Teve dois sonhos em uma mesma noite. Eles tinham tudo a ver, apesar dos cenários diferentes. E tinham tudo a ver com um assunto que sempre o incomodou, mais do que o atemorizou.

No primeiro sonho, ele visita uma casa. Um homem, que não lhe convence ser corretor de imóveis, mostra o lugar como se apontasse um palácio no meio da cidade. O olhar dele, acostumado a se desviar das lorotas, observa o óbvio. A casa é antiga, deve haver muitas histórias ali. Enquanto o improvável corretor de imóveis desfila adjetivos infundados, ele observa os cômodos como quem deseja escutar seus segredos.

É a primeira casa de um quintal no qual se enfileiram mais cinco. Em um salto de um cenário a outro, o corretor canastrão mostra as casas por detrás do bem cuidado quintal da casa. Lá atrás, apinhadas casas de concreto sem reboco, cômodos minúsculos, mal iluminados, conversas sussurradas. Há algo tão ruim ali, que lhe arrepia os pelos e dá nó na garganta. O vendedor de ilusões diz lindezas diversas a respeito de tal lugar. O positivismo dele é indigesto.

É assaltado por uma angústia. Não quer viver naqueles cômodos escondidos do olhar de quem passa. Não quer ser limitado aos metros quadrados daquela tristeza assumida e consagrada. Ali, o ruim parece brotar de escolhas.

Outra mudança de cena, e lá estão: ele, o corretor de móveis picareta e várias pessoas que ele não sabe quem são. Estão em frente à casa principal, aquele palácio embelezado pelo quintal espaçoso. Ah, os filhos que ainda não teve brincariam ali, aprenderiam sobre flores e árvores, seriam pessoinhas do vento, do tempo, das corridas no quintal. Mas, então, seu olhar se nubla. E apesar de ainda ver a beleza naquele quintal, também enxerga adiante, onde criaturas tristes, esboçadas em fumaça, arrastam seus corpos entre bem-me-queres e ipês. Seu coração se compadece de tal tristeza transitando por tal beleza.

Ele pergunta ao corretor de imóveis falacioso se a casa para ele alugar é uma das escondidas lá no fundo. A ideia de levar uma vida naquele viveiro de mágoas o atormenta. O vendedor de conversa para boi dormir diz que de jeito nenhum. Para ele, a casa da frente, do quintal que é só espaço e cor. Com a varanda gigante, das janelas escancaradas para o belo.

Então, aquele engasgo lá do começo do sonho se torna um desejo imenso de sair correndo.

Percebendo como ele se sente, o corretor de imóveis se arma de um sorriso largo e falso, e em falsete, canta que ali é o lar perfeito para se passar eternidade. Que fim de semana, férias, ano sabático, nada disso bastaria. A eternidade, ela sim se sentiria em casa naquele lugar.

Não ele...

O medo que se apossa dele é dos escancarados e tremeluzentes. Faz seu estômago revirar, o silêncio pesar, o espírito estremecer. Trata-se disso, então? Chegar ao lugar onde se passar a eternidade?

De repente, muda o cenário. Muda o sonho. O nefasto corretor de imóveis desaparece.

Agora, ele está dentro de um ônibus em movimento, indo para algum lugar que ele não sabe qual. São poucas as pessoas que o acompanham, mas todas ele reconhece: tias, primos, mãe, pai, irmãos.

Sua alma se enche de uma paz da qual nunca experimentara. É bom estar entre os seus, não importa o destino. Eles conversam entre si, comedidos, mas conectados. Ele não sente vontade de interferir e os observa, o coração repleto de um amor que ele nunca sentiu tão justo.

É noite e lá fora é tudo vasto. Não há casas na beira da estrada. Lá fora a escuridão é clareada pela luz de lua cheia. Ele sempre gostou dessas noites, apesar de lhe trazerem visões. Quando menino, viu muitas dessas visões. Elas o assustavam, mas quase sempre, elas o encantavam, também. Eram sopros de vento desmanchando os cabelos-folhas das árvores. Eram bichos fascinantes caminhando lento, observadores, atentos. Contornos de corpos que dançavam aos deuses que ele nem conhecia. Era um misto de medo e satisfação por enxergar além.

O ônibus para e todos desembarcam. Chegaram a uma fazenda, com alguns casebres ao redor e a casa principal, grande e bonita. Demora um pouco a reconhecê-la, e então percebe: é a casa da fazenda onde passou sua infância e adolescência. Ali aprendeu quase tudo que o definiu, que o moldou.

Corre em direção a sua mãe e pergunta o que fazem ali. Ela continua a abraçar a irmã, que ficou com a propriedade, depois de a família dele se mudar para a cidade. A mãe não o escuta. Fala com cada um deles, sem que lhe percebam a presença.

Algum tempo depois, distraído com as lembranças da pessoa que foi quando vivia ali, já não escutava mais palavras. Sentados na sala, em uma longa conversa regada a café, eles falam sobre acontecimentos que desencadearam o destino dele. Apesar da angústia de não ser ouvido, sente-se protegido pela presença deles.

Talvez já tenha entendido a mensagem, mas prefira protelar mais um pouco, até quando possível. Percebe-se sortudo por não ter caído na lábia daquele corretor de imóveis de araque. O que ele estava negociando ali era algo mais profundo e muito mais importante do que uma casa de aluguel onde se viver. Ao assistir os seus a contemplarem passado, dá-se conta de que, finalmente, conseguira sua casa própria.

Quando menino, costumava fugir de casa, de madrugada, para dar longas caminhadas pela fazenda. Era tanto espaço, tantos passos. Perdia-se naquela imensidão, banhava-se com aquele céu, perdia-se na escuridão quebrada pela luz da lua. Sua vida, depois de lá, não foi tão diferente. Ousou estar onde poucos estiveram. Aprendeu nas sombras o valor da alumiação.

Um de seus maiores medos, agora parece uma escolha justa. Seu espírito se compadece dos que ficarão remoendo lembranças sobre ele. Mas o que fazer? O que um homem que passou a vida a lutar pelo justo, mesmo tendo cometidos seus pecados, pode desejar mais do que sua casa própria?

Os quintais sempre o deslumbraram. Há flores e árvores para serem plantadas. Não há nesse a tristeza oferecida como diamante pelo corretor de imóveis charlatão. Na casa, ainda há cômodos para serem decorados.

Despede-se dos seus e parte para mais uma caminhada pelo quintal da vida que viveu. Uma revisitação, antes do adeus. Antes de se mudar, de vez, para sua casa própria.

Imagem © Thomas Kinkade

carladias.com

Até mais ver, João Gilberto Noll!

Comentários

Albir disse…
Me lembra Drummond e a necessidade de achar dentro si mesmo o paraíso.
Carla Dias disse…
Albir, às vezes penso que é assim que funcionam os paraísos. Tomam o dentro da gente e nos apura o olhar. daí que encontramos no lá fora o que é paraíso em nosso dentro.

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