A MOÇA NA VARANDA >> Zoraya Cesar

Cristof era poeta. Era romântico. Era solitário. 

Morava numa área pobre e mal afamada. Vivia de bicos, enquanto esperava, cada vez mais em vão, que suas poesias arcadianas fizessem sucesso. Seu maior desespero, porém, era nunca ter vivido uma verdadeira e trágica história de amor. Um poeta, acreditava, que não estivesse prestes a cair do abismo da paixão não era digno desse nome.

Uma fina lua crescente aparecia, ainda menina, em seu primeiro dia de céu. As três horas da manhã chegavam silenciosas como o defunto em seu caixão, e  Cristof se perdia na escura alameda dos desesperançados, recostado à janela do quarto da pensão barata em que vivia.

Ouviu, então, um suspiro fundo, vindo das profundezas de uma caverna de amores desfeitos. Sentiu arrepios, como se asas de aves agourentas roçassem sua pele. Um cheiro enjoativo de rosas pisadas invadiu seus poros, entorpeceu seus sentidos e atraiu-o irresistivelmente para a janela do prédio em frente, de onde viera o som.

Ela era linda, delicada e branca
como uma porcelana biscuit
Linda além das palavras do poeta era a dona do suspiro. Sua tez branca e delicada de biscuit contrastava com longos, pesados e lisos cabelos negros. Parecia frágil e amedrontada. Cristof não conseguiu desviar os olhos e, sem nem mesmo atinar para o que estava acontecendo, mergulhou de paixão. E assim ficaram, ambos silentes, até que, pouco antes do amanhecer, ela sorriu e, fechando a janela, desapareceu. 

Assim que as primeiras luzes da manhã saíram a passear, Cristof foi até o prédio de sua amada, no qual nunca prestara atenção. Era tão velho e degradado quanto os da vizinhança; parecia abandonado, e a portaria estava lacrada.  

Frustrado, voltou à pensão. Havia um envelope vermelho, cheirando a terra revolvida, em seu escaninho. Ao pegá-lo, sentiu ímpetos de rasgá-lo sem ler e sair correndo para longe, para sempre. Mas, no átimo de instante seguinte seu coração apaixonado de poeta calou a voz de sua alma. Ele abriu a carta e leu, sôfrego: 

“Amado. Ainda não sei o seu nome, mas sei que você é meu amor, o herói que vai mudar meu terrível destino. Te espero às 3 da manhã. Não pergunte nada ou nunca mais me verá. Explicarei tudo na hora certa. 
Sua para sempre, Lenore.”

Lá no fundo, sua alma tentou falar algo importante, mas a ideia de viver uma paixão envolta em mistério e perigo subjugou-a e ela se calou.

Ele foi ao encontro. A portaria estava aberta. Na meia escuridão que recendia a velas queimadas, nem o silêncio ouvia os pés de Cristof subindo as escadas rangentes. A porta do apartamento que procurava escancarava-se, deixando à mostra uma sala limpa e parcamente mobiliada. E, ao centro, Lenore, de pé, nua, a esperá-lo. Sem trocar palavras, se amaram até quase o amanhecer.

E assim se repetiu durante seis noites. Embora feliz, Cristof sentia-se adoentado e febril. Não dormia, escrevendo alucinados poemas de amor. Não comia, sonhando acordado com sua amada. Na manhã do sétimo dia, recebeu outra carta:

“Amado, se estiver disposto a tudo para me libertar, hoje eu conto a verdade. Saiba que, se vier, seu caminho é sem volta. Minha vida está em suas mãos. 
Para sempre, Lenore.”

As horas desse dia passaram como que correndo da morte. Cristof chegou à madrugada excitado e exausto. Suas pernas pesavam ao subirem as escadas, mas seu coração estava firme no desejo de salvar sua amada. 

- Você veio! Meu amor! Jura que vai me salvar? De livre e espontânea vontade fará tudo por mim?

A voz de Lenore estava trêmula; os olhos, súplices.

Cristof ajoelhou-se e gritou sim, sim, mil vezes sim, faço tudo por você. Era seu grande momento: poeta e herói.

Obrigada, querido, sussurou Lenore, e levantou um Cristof aturdido com a força de mulher tão miúda. Ela o beijou na boca num tal crescendo de voracidade, que Cristof, assustado, tentou se desvencilhar, mas em vão. Sentia-se cada vez mais fraco, sua energia, percebeu, sendo sugada pelo beijo de Lenore. Ela o largou e seu corpo, já quase sem vida, caiu como uma desconjuntada boneca de trapos.

Cristof não entendia. O apartamento, subitamente, tinha se transformado numa pocilga empoeirada, coberta de mofo e fezes de ratos que ali perambulavam. Não havia móveis, as paredes estavam rachadas. Se tivesse forças, teria gritado de horror. O rosto de Lenore virara uma máscara enrugada cheia de veias negras, e sua pele, antes branco-leite, estava escamosa, gosmenta, fétida. Alucinação?

- Não querido, não é alucinação – disse Lenore (ou quem fosse), lendo seus pensamentos - É a morte. Quando vocês, humanos, morrem, veem as coisas como realmente são. 

Em breve outras criaturas se alimentariam dos restos do corpo de Cristof. Ela não tinha mais nada a ver com isso. Conseguira seu intento, encontrar quem se dispusesse a salvá-la por amor. Trapaceara, claro, mas isso é o que se espera de um demônio.  

Por mais sete dias, durante a lua cheia, o demônio poderia sair do apartamento e passear entre mortais em um corpo encarnado, com sua falsa aparência. Seduziria, mataria, colocaria a perder algumas almas para entregá-las a seu mestre. E, com sorte, faria com que outro tolo caísse nas armadilhas da paixão e, desavisadamente, trocasse a própria vida pela dela.

Lenore saiu, uma linda mulher de pelo branco-leite, longos cabelos negros e delicada como um bicuit.
O diabo não vem de capa vermelha ou chifres pontudos.
Ele se vem como tudo aquilo que você sempre desejou




Foto: pinterest


Comentários

ai, meu Deus, nâo namoro mais na lua cheia!

ZO, adoro os requintes macabros! em quantas vidas voce foi feiticeira? nao importa, nesta vc faz milagres!

beijos
Marcio disse…
Zoraya, parafraseando o título da peça de Pirandello, esse seu texto é um roteiro à procura de um estúdio de cinema. Chegou a me lembrar “Coração Satânico” (“Angel Heart”, no original), do Alan Parker.
Meus parabéns pelo extremo domínio da narrativa, e pela descrição detalhista das cenas.
Seu talento merece repercussão.
Mas não posso deixar de fazer um comentário cretino: esse Cristof deve ter sofrido alguma alucinação enquanto praticava o “amor a sós”, também conhecido vulgarmente como “cinco contra um”.
Anônimo disse…
Poderia ter sido um "Súcubo"! Também gostam da lua cheia, mas esses tem um objetivo mais "prático", hehehe...! Veja abaixo.
Súcubo (em latim succubus, de succubare) é um demônio com aparência feminina que invade o sonho dos homens a fim de ter uma relação sexual com eles para lhes roubar a energia vital.

O súcubo se alimenta da energia sexual dos homens e coleta seu esperma para engravidar a si mesma ou a outros súcubos, e quando invade o sonho de uma pessoa ele toma a aparência do seu desejo sexual e suga a energia proveniente do prazer do atacado. As succubas tendem a ficar mais fortes e mais frequentes em épocas de transição de lua cheia, com isso ficando mais descontroladas e mais sedentas. Estão associados a casos de doenças e tormentos psicológicos de origem sexual, pois após os ataques se seguiam pesadelos e poluções noturnas nas vítimas. De acordo com a mitologia, são seres que podem viver aproximadamente 750 anos. A contraparte masculina desse demônio é chamada de "íncubo"!
As mulheres, cuidado com íncubos, que além de sexo, adoram a grana delas, e depois que conseguem "sugar toda a grana", somem, hehehe...



Clarisse Pacheco disse…
Uma vampira de energia, praticamente. Tomara que a alma do pobre Cristof não caia no mesmo destino de sua matéria. E quem sabe não se tornou, com sua verve pré -morte, imortalizado no Olimpo dos grandes artistas? Seria interessante o paradoxo...
Clarisse Pacheco disse…
Uma vampira de energia, praticamente. Tomara que a alma do pobre Cristof não caia no mesmo destino de sua matéria. E quem sabe não se tornou, com sua verve pré -morte, imortalizado no Olimpo dos grandes artistas? Seria interessante o paradoxo...
Albir disse…
Quando voltar a dormir, terei pesadelos!

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