ATÉ MAIS VER >> Carla Dias >>
Ao Endric, alguém que valeu a pena conhecer
Há coisas que eu não lhe contei. Por exemplo, eu e minha mãe falávamos
secretamente sobre você. Bastava surgir seu nome na conversa, e as nossas falas
eram as mesmas, não por falta de criatividade, mas por reconhecimento à
verdade.
- Mas esse menino, mãe...
- É mesmo...
- Fico feliz de eles serem tão amigos.
- E também... Ele é um menino muito bom.
- É sim...
- O irmão também...
- Sim!
Apreciávamos que o neto de minha mãe, meu sobrinho, tivesse um amigo como
você e os outros desse seleto grupo de irmão e primos e primas. Um pequeno
grupo de pessoas muito bacanas.
Sabe, eu cresci com sua mãe, sua tia e seus tios. Somos primos, mas também
somos irmãos, que é nisso que dá frequentar o mesmo quintal durante a infância,
e aprender a perdoar os puxões de cabelo, palavrões e chutes nas canelas.
Sua avó, minha tia, cansou de fazer coalhada para mim, quando eu os
visitava e você ainda era um molequinho. Quando não coalhada, manjar. As horas
sentadas à mesa, café sempre presente, conversas sobre quem fomos, quem nos
tornamos e questionamento sobre aonde iremos parar, bem, isso nós herdamos da
nossa família predominantemente feminina. Praticamente tudo se resolvia à mesa,
com altas doses de café. Muito disso se estende aos dias de hoje.
As mulheres dessa família são complicadas, dramáticas, mas completamente
apaixonadas pelos seus filhos.
Sua mãe, sua tia e eu somos amigas-irmãs. Construímos esse afeto desde o
início de nós. Por isso mesmo, os filhos delas, assim como os dos primos, eu
considero meus sobrinhos.
Não deu tempo de lhe contar que morro de medo de pombas, porque elas
adoram voar em minha direção. Acho sempre que uma delas vai me arrancar um
olho. E não é medo de sustinho, não. Falta-me o ar quando estou diante de
pombas. Eu travo.
Aposto que você se divertiria com isso.
E nem contei - porque em um dia você estava trabalhando, no outro trabalhando
e no outro eu me esqueci - que finalmente fiz uma tatuagem. Depois daquele
bate-papo sobre as suas, achei que você gostaria de saber. Eu gostaria de lhe
mostrar, porque ficou mesmo bonita, e me traz sim a memória das árvores que
viviam aí no fundo do quintal, onde hoje vivem casas e mais casas. Traz-me a
lembrança da música da chuva e do vento passando por elas. E doeu muito
fazê-la. Mas eu estava acompanhada de uma grande amiga, dessas que, assim como
você, faz bem aos seus, quem me deu a tatuagem de presente de aniversário
adiantado – sete meses adiantado! –, e ainda bem que o tatuador era agradável
aos olhos.
Eu sei que a vida lhe deu alguns fardos para carregar, e os ditos não eram
nada leves. E você, tão jovem, seguiu com espírito elevado, sendo amigo e
companheiro de muitos, e um pai para sua filha que alguns filhos por aí gostariam
de ter. Eu o admiro profundamente por isso. Eu nunca disse, porque eu sou
dessas. Eu não digo, escrevo. E se tiver algum membro da minha família lendo
esse texto, que fique claro e não se confunda com arrogância: sou péssima em
dizer. Eu escrevo.
Não posso negar que você deixou as coisas meio complicadas por aqui. Nunca
liguei para você, mas seu número de telefone está na minha agenda de contatos.
Vai ficar lá. Mas o que realmente pesa é a ideia de silêncio. Eu adoro
silêncio, sou completamente a favor do silêncio, eu diria que necessito de
silêncio. Só que não dos que não podem ser quebrados.
Outra coisa... Abraço. Eu me lembro dos abraços demorados que eu lhe dava,
e ainda tinha a cara de pau de comentar algo que costuma fazer adulto recebedor
de abraço se envergonhar: eu o peguei no colo. Você nem ligava, sorria e ficava
lá, disponível para o abraço por quanto tempo fosse. Seu irmão também é assim,
seus primos são assim. Nasceram nessa família em que as mulheres abraçam e se
perdem nesses abraços e protegem em abraço.
Mas sabe o quê? Eu o peguei no colo. Cada abraço que lhe dei, quando ficou
impossível pegá-lo no colo, foi como acalentá-lo novamente. Não há nada que eu
respeite mais nesse processo de experiência e passagem de tempo do que observar
uma pessoa se transformar. Foi uma experiência muito especial vê-lo se
transformar em um homem de alma gentil, pronto para o trabalho, com bom humor,
pai dedicado e com uma tendência absurda a cometer gentilezas.
Obrigada.
Sei que, neste momento, é a dor que impera, entre aqueles que o amam. O
que fazer com o tempo que parou, com a ausência das palavras ditas e do som das
gargalhadas? O que fazer com um futuro sem você nele?
Eu sei: é a vida. Sim, é clichê, mas eu acredito na importância de alguns
deles. É a vida, temos de lidar com a sua ausência, o seu silêncio, a sua
passagem curta por esse mundo. É a vida, mas nem por isso é tarefa fácil.
Tenho de lhe contar que observei a todos no dia da sua despedida. E em
meio a tanta tristeza, percebi que você foi a alegria na vida de muitos. Em
tempos confusos como este, a clareza do benquerer o outro é de uma lindeza
indecorosa. Foi triste vê-lo partir. Foi lindo ver como você é amado. Foi
triste vê-lo partir. Foi lindo ver como aquelas pessoas, familiares e amigos, têm
verdadeira admiração por você. Eu me incluo nessa turma.
Sua passagem por esse mundo foi admirável.
Dizem que acabamos nos apegando somente ao que é bom de uma pessoa quando
ela se vai. Não nesse caso. Você não é perfeito – também me esqueci de lhe
contar que não acredito em perfeição –, o que significa que é humano. Você é um
dos meus seres humanos preferidos.
Sempre o achei, como diria alguns das antigas, um boa-praça. E apesar da
tristeza que a sua ausência inspira, devo dizer a você o que disse a sua mãe,
enfiada em um daqueles abraços sem fim, mas dessa vez acompanhado por um
engasgo: não, você não perdeu seu menino. Você teve o privilégio de tê-lo em
sua vida por quase vinte e cinco anos.
Sabe o tempo? Ele toma outras proporções, de acordo com o olhar que
lançamos a ele.
Também quero dizer que sim...
Sentirei imensamente sua falta, mesmo não tendo lhe contado mais algumas
coisas com as quais, tenho certeza, você se divertiria. Naquela mesa de café,
lá da sua casa, com minhas primas-irmãs e tia, sua avó, os primos-irmãos e a
leva de primos que amo como amo meus sobrinhos, lembraremos de você como a
pessoa que ficou no nosso coração e de lá jamais partirá. Uma pessoa que vale a
pena conhecer e amar.
Sentirei falta de acalentá-lo em um abraço. De ser acalentada por você.
Eu avisei... Eu não sei dizer. Eu escrevo.
Comentários
Um beijo
Vera Figueiredo
É difícil mesmo, Vera. Porém, ele deixou muito a ser celebrado, e acho que isso é valioso, não?
Sim... O Endric era uma pessoa maravilhosa. Sorte a nossa por tê-lo na família. Beijo.
Zoraya, obrigada pelo seu silêncio. Beijo.