CLEUSA >> Sergio Geia
Silencioso como uma igreja, invisível como a alma
humana, assim é o meu telefone. Às vezes até esqueço que tenho um. Não passo o
número para ninguém; quando me pedem para que conste em algum formulário,
preciso consultar a agenda. Na verdade, confesso que o instalei meio a
contragosto. Não queria um telefone aqui em casa; sucumbi, contudo, à conversa
de uma boa vendedora.
Quando liguei, minha intenção era fazer a
assinatura de internet e televisão; nada mais. Ocorre que se incluísse no
pacote o telefone, a assinatura sairia mais barata. Perguntei duas vezes à garota
do outro lado da linha se era isso mesmo que eu tinha entendido: que se
incluísse mais um produto na compra, a conta ficaria menor; se, ao contrário,
resolvesse não adquirir a linha, pagaria mais. Ela, rindo da minha inocência de
camponês, repetiu bem doce que sim: “Isso mesmo, seu Sergio! Um combo! Compensa!”.
Se compensa, não sei. Só sei que aceitei o tal combo, e por isso, por esse
excelente negócio, estou agora a escrever lamúrias.
Lembro-me que no passado comprar uma linha telefônica
era privilégio de poucos. Havia fila, enormes dificuldades, uma burocracia
indecorosa; eram anos esperando, e o preço, salgado. Ladinos possuíam linhas, alugavam,
o telefone constava da declaração do imposto de renda, tinha valor patrimonial,
podia ser penhorado pelo meirinho em caso de dívidas.
Mas enfim, fui até uma loja e comprei um aparelho;
de todos os modelos disponíveis, comprei o mais barato. Mesmo sem ter a
intenção de utilizar a linha, a moça me disse que deveria ter um quando da
visita do técnico.
Voltei pra casa com a sensação de estar cometendo
um grave erro, de estar dando abrigo a um inimigo; de que o meu sossego, esse
estado sublime do espírito, pudesse estar com os dias contados. Infelizmente, uma
sensação que se confirmou na semana passada, quando esse energúmeno não parou
de tocar.
Sou homem de poucos amigos. No entanto, julgo que
mesmo que se os tivesse aos montes, o telefone ainda assim tocaria pouco. Não há
mais tempo para as amizades. A vida corrida, o trabalho em excesso, a família,
as atividades curriculares sugam de tal forma a energia humana, que os amigos
ficaram para segundo plano. Quando muito, se encontram num bar, uma ou duas
vezes ao ano, jogam conversa fora, falam do passado.
De modo que estranhei outro dia, um sábado, o
telefone tocar: era de uma operadora de telefonia querendo falar com a Cleusa. Disse
muito educadamente que aqui não morava nenhuma Cleusa, que não conhecia nenhuma
Cleusa, e que meu telefone era novo, que não podia ter nenhuma Cleusa vinculada
a ele. O jovem do outro lado da linha, também bastante educado, pediu desculpas
pelo incômodo e desligou.
Dez minutos depois, o telefone voltava a gritar.
Atendi, bastante contrariado, e uma moça do outro lado da linha queria falar
com a Cleusa. Expliquei outra vez que aqui não tinha nenhuma Cleusa, ainda conseguindo
manter a calma, fruto talvez de sessões diárias de meditação transcendental que
me determinei a fazer; ressaltei que era a segunda vez que ligavam em menos de
vinte minutos; que eu já tinha dito que aqui não existia nenhuma Cleusa, que
eles anotassem a informação em algum lugar e não ligassem mais.
Almocei uma quentinha que pedi aqui perto, no
Alemão, e no meio do cochilo pós-almoço, eis que me ligam pela terceira vez.
Não vou reproduzir ipsis litteris o
que disse ao homem da operadora; digo-lhe apenas que pedi a ele que arrumasse
uma caneta, uma simples caneta (ele ficou sem entender) e com ela fizesse o que
tinha de ser feito: que pegasse o formulário e riscasse o meu número da frente
dessa tal de Cleusa. Será que não são capazes de promover uma simples
atualização de dados!?
Para o senhor ter uma ideia, o telefone tocou no
sábado mais quatorze vezes; não atendi. No domingo, nove. Na semana seguinte,
outras quinze, de modo que ando meio desacorçoado com tudo isso, com essa
operadora incompetente, incapaz de atualizar um simples dado, e, claro, com essa
tal de Cleusa.
Ô Cleusa, mas afinal, quem és tu? O que fizestes
para esses que a procuram? Ou: o que não fizestes? E o que eu, um pobre cidadão,
honesto, solitário, que vive de escrever crônicas, o que eu fiz à sua pessoa para
merecer tamanho castigo, esse endemoninhado que destrói a minha santa paz? Ô Cleusa,
seja você quem for, se me lê, dê um jeito nisso, ora bolas! Manifeste-se!
Resolva! Depois de quase meio século de existência, graças ao seu descuido,
agora ando eu sendo tachado de falacioso!? Talvez pensem que você seja minha
parenta, que estou a escondê-la, ou minha mulher, quem sabe?
Olhe só... Pois é, amável leitor, não exagero
não. Veja: agora, agorinha mesmo, neste exato momento em que estou terminando
de desabafar com o senhor essa minha desesperança, o telefone está aqui a tocar.
Tocando, tocando... Ô Cleusa...
“Alô. Sim. Quer falar com quem, amigo? Com a Cleusa?
Ah, sim, pois não, é ela!”
Ilustração: pt.depositphotos.com
Comentários
Melhor solução, Sergio. :) Já fiz algo parecido certa vez, e resolveu.
Só queria lhe dizer que sua crônica é deliciosa. Parabéns, quero ver mais coisas suas.
Um abraço[
Maria Rita Lemos