AS JANELAS VERMELHAS DE CALIFÓRNIA
>> Carla Dias >>


Califórnia é um casarão localizado em uma rua sem asfalto de um fim de mundo qualquer. Ninguém de fora do perímetro sabe o que lá se passa. Ninguém pretende saber. Muitos estão certos de que nada de bom acontece ali.

Califórnia não recebe suas encomendas pelo correio. Seu código postal nasceu na lista negra, aquela que avisa aos carteiros que melhor é ficar longe, que eles correm risco de não fazer suas entregas e ainda voltar para casa sem sapatos e os miúdos dinheiros que frequentam suas carteiras.

Por ali, moram alguns carteiros.

O entorno de Califórnia é o das ladeiras. O casarão de janelas vermelhas e paredes brancas chama atenção pela sua formosura desandada. Tudo parece imenso em Califórnia, mas o que realmente é imensa é a porta de entrada. Vermelha. E lá ele fica, majestoso, no pico entre a Ladeira das Dolências e a Ladeira do Despenteado.

Despenteado é um homem que nasceu por ali e de lá não consegue sair. Até fez planos, arriscou tentativas, mas logo estava de volta, mala e cuia, e um coração partido de itinerante que pensou que seria bem recebido na planície. Desapontamento é o tipo de coisa que Despenteado coleciona. Ainda assim, seu apelido – não há mistério relacionado a isso, ele vive despenteado – batizou uma ladeira, porque ele controla o bairro.

Califórnia pega fogo aos domingos. Daí que a população tem de ter um pouco de paciência. Despenteado já explicou que as domingueiras fazem parte da socialização naquele cafundó. É preciso saber que cara tem o seu vizinho, o tipo de produto do qual ele deseja usufruir. Califórnia é distribuidora oficial dos produtos oferecidos por Despenteado.

Califórnia é o resultado de um movimento de confronto com a miséria do lugar. Castigado pelo tempo, ele abriga histórias. Foi o avô de Despenteado quem o construiu com as próprias mãos e as mãos de alguns amigos. Sr. Ziló sonhou com esse lugar lindo e imponente, onde as pessoas eram bem-vindas, independentemente de cor, raça, religião e tipo de pinga preferida. Acordou do sonho e começou seu projeto de vida. Morreu cinco minutos depois de inaugurar Califórnia, nome que escolheu ao relembrar o dia em que conheceu um estrangeiro que visitara a casa de seus pais, quando ele era menino de tudo. O homem era gentil e, de acordo com o tradutor que o acompanhava, vinha da Califórnia e queria comprar uns feijões. Desde então, Califórnia se tornou sinônimo de sorriso gentil para Sr. Ziló.

Ele nunca vira tanta gentileza exposta em um sorriso.

Sr. Ziló não tinha família grande. Eram somente ele e Despenteado, depois que a esposa e a filha morreram em um acidente tão trágico, que nem vale a pena lembrar. Depois da morte de Sr. Ziló, Despenteado ficou louco, queria colocar o casarão abaixo, estava certo de que aquele lugar levara embora a vida de seu avô. Nunca mais entrou ali. Foram duas décadas sem que uma porta fosse aberta. Sem que suas janelas vermelhas abrissem seus olhos para a linda vista do pico onde o casarão reinava.

Califórnia é um casarão sobre o qual aqueles que jamais botarão os olhos nele gostam de falar. Para esses distantes, aquele é o próprio inferno, onde reinam miséria e baixaria total, sem contar os crimes. Quem não conhece o bairro onde fica o Califórnia, não quer nem passar por perto. Já deu em televisão, rádio, internet e o diabo que o lugar é de gente ruim.

Gente ruim feito Sr. Ziló. Gente ruim feito Descabelado.

Viver no bairro não é fácil. Todos ali sabem que falta muito para que possam se sentir confortáveis com a vida. O básico é negado a eles, diariamente.

Claro que tem miséria, tem crime, tem sacanagem, afinal, ali vivem, como em outros lugares do planeta, seres humanos. Esse bicho que faz besteiras em qualquer lugar, no pico ou na planície. O que não sabem os que açoitam Califórnia com suas ideias compradas, como se compra revista de fofocas, é que Descabelado se tornou prefeito da cidade que aquele bairro abandonado se tornou. Vinte e dois anos depois da morte do avô, e de uma tentativa infeliz de abandonar Califórnia, Descabelado encarou o casarão e entrou nele, descerrou-lhe portas e janelas, e em dois tempos, viu-se apaixonado por Califórnia.

Domingo. Descabelado chega cedo ao Califórnia, a música alta, daquele jeito de acordar vizinho escolado em dormir o dia inteiro. Logo começam a chegar as crianças, usando roupas de sair, de ir à missa, ao culto, ao bate tambor. Seus pais parecem cansados da lida, dos desafios da vida. Ainda assim, sorriem.

Califórnia é uma escola de dança e teatro. Ali, Descabelado ensina as crianças a dançarem samba, reggae, hip hop, tango, valsa e por aí vai. Aos domingos, sempre há algum evento para a coletividade: apresentação de dança, almoço comunitário para arrecadação de comida e roupas para os que estão desempregados, leitura dramática de peças de teatro, brincadeiras, troca de ideias sobre como fazer do entorno de Califórnia o lugar sobre o qual muitos nem querem saber, porque são incapazes de compreender o que o sorriso gentil de um desconhecido pode fazer por muitos outros.

Ah, se eles soubessem sobre o que abriga aquele teto, aquelas janelas vermelhas, aquela porta suntuosamente danificada. Vermelha.

Quando olha para o distante, lá da janela de seu casarão, Descabelado agradece ao estrangeiro e ao Sr. Ziló. Há desejos e sonhos que só vingam no próximo. Ainda assim, é lindo de se ver.

Imagem: As mãos do Dr. Moore © Diego Rivera

Comentários

Zoraya disse…
Lindo, Carla!
Carla Dias disse…
Obrigada, Zoraya. :)

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