VIÚVA NEGRA >> Zoraya Cesar

Elza sempre fora chamada de Elzinha, e não poderia ser diferente. Tão magra que mais parecia um daqueles gravetinhos que caem ao chão à mais leve brisa, e fazem crec-crec quando pisados. Era uma frágil donzela, sempre doente, tímida e feia. Não feia horrenda, mas feia feinha, sem graça e sem jeito. E esquisita também, vivia falando em magia negra, mortos-vivos, feitiçarias do Além. Acreditem em mim, Elzinha era desprovida de encantos outros que não sua inteligência e delicadeza – parecia incapaz de fazer mal a quem quer que fosse, nem carne comia. Seu destino, comentado à socapa por toda a família, era o de morrer solteirona - isso se vivesse muito, diziam.

No entanto, Elzinha tinha um encanto bastante sedutor: era rica.

E, como era de se esperar, acabou encontrando quem quisesse casar. Afinal, beleza não põe mesa, mas dinheiro sim. E porque Marcos Patrício iria se importar com o constante estado adoentado de Elzinha, seu olhar meio parado, seus dentes fora de ordem, suas manias? Ela era doce e compreensiva, divertida, até, com aquelas ideias estapafúrdias de vida além-túmulo e invocação de almas penadas. Marcos Patrício era um bon vivant que não acreditava em nada que suas mãos não pudessem tocar e queria mais era largar a profissão de salva-vidas alheias para salvar a sua.

Pois bem, casaram-se, e Marcos Patrício tratou logo de gastar o dinheiro da esposa em carros, viagens (às quais ela nunca podia ir, sempre doentinha, sempre cheia de achaques e restrições médicas), jogatina e, eventualmente, algumas noitadas com mulheres. 

E como Elzinha encarava essa faceta da vida de casada?

Com a maior naturalidade. Dizia que o coitado do marido era jovem e bonito, não podia passar todos os dias de sua vida cuidando de uma criatura tão enfermiça quanto ela. Ademais, durante o tempo em que ele ficava em casa, tratava-a muito bem, era meu amorzinho pra cá, meu bem-querer pra lá, e sempre cumpria seus deveres conjugais regularmente, cada vez que Elzinha tinha vontade. Claro que não vou entrar na intimidade do casal, mas Elzinha, a doce e recatada e esquisita Elzinha, era voraz.

Dizem que o casamento é mais proveitoso ao homem que à mulher. E até um ano depois do casamento, parecia que essa premissa era verdadeira.

Até que Marcos Patrício caiu doente de uma enfermidade desconhecida, que nem os melhores médicos que o rico dinheiro de Elzinha podia comprar conseguiram diagnosticar. Ele foi enfraquecendo, perdendo a vontade de farrear, emagrecendo e assim foi até não sair mais da cama. Exangue, lasso, derrotado. Passava os dias deitado, olhando fixo para o teto, sem forças nem para comer, era alimentado pelo mingau que Elzinha carinhosamente lhe dava na boca todos os dias.

Que horror, dirão vocês, um casal doente, que falta de sorte.

E eu direi, não sejam apressados, as aparências enganam.

Porque, enquanto Marcos Patrício definhava irremediavelmente, Elzinha resplandecia. Engordava, fortificava-se, não mais caía doente a toda hora. Dia a dia ficava mais irreconhecível, quase bonita, de tão saudável.

Alguns meses se passaram e então os médicos foram taxativos: Marcos Patrício não ia se recuperar, a não ser por milagre. Viveria naquele estado vegetativo, morrendo em vida, cuja duração dependeria muito dos cuidados que recebesse.

Elzinha não se perturbou. Garantiu que seu amado teria sempre do bom e do melhor. E toda noite sentava ao lado dele, dava-lhe o mingau energético que ela mesma preparava, segurava sua mão ossuda e cantava estranhas canções. Depois, acendia velas pretas e aspergia no corpo inerte do marido uma água arroxeada. Se alguém lhe perguntasse o que era tudo aquilo, Elzinha explicaria que eram simpatias de cura, aprendidas com uma rezadeira das antigas.

Das Antilhas, melhor dizendo, e do Haiti, mais exatamente. Pois o que Elzinha fazia era tudo, menos desejar a melhora do marido. E depois de envenená-lo, todos os dias, com uma erva entorpecente, acender as velas e invocar espíritos sem luz com as orações cantadas em crioulo haitiano e derramar poção sugadora de auras no corpo de Marcos Patrício, Elzinha começava a conversar com ele. Contava o quanto estava feliz por tê-lo encontrado, tão forte, tão saudável, como fora fácil roubar-lhe a energia vital, passando-a para seu próprio corpo, dia a dia, cada vez que faziam sexo. E, cinicamente, agradecia-lhe por tudo, pois, agora que estava bonita e saudável, seria ainda mais fácil encontrar mais um trouxa para sugar a energia. Viveria eternamente, às custas da  vida alheia. E dizia que achava tudo muito justo, afinal, ele não vivera às custas de seu dinheiro?

- Então, meu amor, você pensou que eu morreria cedo e te deixaria com minha fortuna. Vou te dizer uma coisa, meu bem: quem vai morrer é você, lentamente, até que eu esteja forte o suficiente e não te reste um pingo de vitalidade. Aí eu te deixo descansar em paz. E reze para eu estar de bom humor e não lembrar das suas traições, ou posso deixar sua alma presa nesse corpo inútil para sempre...

E rindo, dançava ao redor da cama, cantando aquelas estranhas invocações.

(A alguns quilômetros dali, Lucrécio Lucas, caçador, consultava, em sua tábua Ouija, se havia algum feiticeiro vodu na cidade que tivesse de ser eliminado. O dedo mexeu-se lenta, mas resolutamente: sim)


Comentários

ai, deu medo!

por isso é que vou arrumar um marido bonitão e rico, assim ele não vai ter nada pra tirar de mim, rsrsrs...

bj!
Unknown disse…
Hahaha!!!
Excelente, Zô!
Mauro disse…
Adorei, Zô! Sabe que eu adoro as suas crônicas sobrenaturais... só acho que você devia continuar a história com o caçador. Daria uma bela coletânea de contos nesse tom meio "Poe" seu.
Cristiane disse…
Criativa vc hein?! Muito boa, com gostinho de quero mais!
Anônimo disse…
Muito boa, vai se juntar às crônicas da meia-noite.

Essa é pior que a velhinha da vila! Elzinha danadinha é uma espertinha...rs...rs, será que vai ser caçada? Aglae
L.A. disse…
Que bruxa má!
albir disse…
Frágil, doente, tímida e feia.
O mar tem mais perigo quando é calmaria.
Zoraya disse…
Ana: ótima sugestão!
Silvia, já notei que você é chegada a um susto, né? Corajosa, eu morro de medo às vezes até do que eu escrevo.
Mauro: acho que vou começar a fazer o que você sugeriu. e assim também atendo à Cristiane e respondo à Aglae
L.A.: pode apostar que Elzinha é má sim, e nao vai parar por aqui
Albir, sensacional. Posso usar sua frase em uma próxima história?
A todos, obrigada!
Unknown disse…
Tem que reunir todos esses "causos" deliciosos num livro!
São excepcionais!!!!
albir disse…
Na verdade isso é uma música gravada pela Bethania: "Amor,amor" de Sueli Costa.
Zoraya disse…
Silvia e Albir, obrigada!
Erica disse…
Yo no creo en vampiros, pero que los hay, los hay...rs
Cecilia Radetic disse…
Zo, você como sempre surpreendente. Mas que o Marcos mereceu, merceu, hahaha Se achava esperto...
Concordo com o Mauro e a Silvia, vamos a
coletanea de cronicas a poe e aghata.
meus dedinhos já estão coçando para ilustrar...
Clarisse disse…
AMO os nomes dos seus personagens, Zô!!! Cada um mais inspirado que o outro

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