PAIS >> Zoraya Cesar

I

A brisa quente que entrava pela janela semiaberta trazia partículas de sol vespertino, que dourava os tacos do corredor e coloria de amarelo as paredes creme. A brisa trazia um leve cheiro de grama cortada, mas a enfermeira não percebeu nada disso, absorta em tirar a chave do bolso, entrar e acender a luz da sala sem janelas, repleta de armários trancados e vidros meticulosamente arrumados por tamanho. Ela leu as instruções do médico, abriu um dos armários, dosou as receitas, distribuiu-as entre os vários potinhos, rotulou-as, e saiu.

O horário de visitas tinha acabado e agora os pacientes iriam tomar seus paliativos noturnos. Doses de calmantes, analgésicos, antitérmicos foram distribuídas competentemente, entre uma palavra e outra de conforto ou estímulo no mesmo tom monocórdio de quem nem ouve o que está falando.

Só o paciente do quarto 404 despertava a enfermeira de seu torpor profissional e levantava uma vaga curiosidade sobre o que teria levado um senhor ainda jovem a se refugiar ali? Mas, tão logo ele tomava seu calmante e voltava os olhos para as montanhas francesas que cercavam a casa, ela também se voltava para sua árida paisagem interna.

Até o dia em que, no refeitório, durante o almoço, não se sabe quem sintonizou o canal no qual passava a retrospectiva do massacre na Noruega¹, mas o certo é que o paciente do 404 começou a chorar alto e a murmurar palavras sem sentido em uma língua estranha, mas de uma maneira tão sentida, que todos em volta começaram a chorar também, muitos por compaixão, outros por mimetismo e vários especularam que ele devia ter perdido alguém na tragédia. Os médicos chegaram, tiraram-no da sala com toda a delicadeza, enquanto as enfermeiras tentavam acalmar o nervosismo dos outros internos, e o levaram para o ambulatório. Ele só chorava e sussurrava um mesmo som incompreensível, recusando-se a tomar qualquer medicamento. Finalmente, entre uma respiração entrecortada e outra, pediu, em francês quase perfeito, a presença de um padre.

Horas depois, quando o sacerdote chegou, o homem já nem se mexia mais, exausto de tanto chorar. Só parecia vivo por conta das lágrimas incessantes que escorriam de seus olhos abertos. Assim que ele viu o homem negro de batina, pegou em sua mão e disse: eu sou um monstro. O padre esperou. “Desejei a morte de meu próprio filho, eu não presto como pai, abandono meu filho quando ele mais precisa de mim, eu não aguento vê-lo na cadeia, tenho medo, quem é mais pecador?”, e chorava, chorava. Culpado pelos atos do filho, culpado por não lhe prestar assistência, amedrontado e sozinho, o homem definhava num sofrimento profundo. O padre, calejado pelos 20 anos passados no meio das guerras africanas, sentou-se, pensou longamente e, tão baixo, que apenas o espírito do homem ouviu, começou a falar...

Que o Grande Pai amenize o sofrimento de todos os pais que, embalde seus esforços, exemplos e amor, viram seus filhos optarem pelo caminho das trevas.

¹ O autor se refere ao massacre ocorrido na ilha norueguesa de Utoya, em 23 de julho de 2011, no qual um homem matou 68 jovens, por motivos até hoje ainda não plenamente esclarecidos.


II

O telefone tocou de madrugada e ele já se levantou xingando. Era da delegacia, pedindo que fosse pegar seu filho e levasse um advogado, a situação era grave. A mulher choramingava de preocupação, o que o irritou mais ainda, e ele se livrou dela com um safanão. Não precisava de um maldito advogado, ele era um.

Botou uma roupa boa, o melhor relógio, e foi. Entrou na delegacia já falando alto e botando banca, como dizem. O rapaz estava lá, sentado com um amigo. Ao ver o pai, sorriu para ele e piscou o olho, como se dissesse: “muito barulho por nada”. Ele ficou mais calmo. Se o filho estava bem, tudo estava bem, era questão de enquadrar aqueles policiaizinhos de m***.

Quando o delegado relatou o acontecido, ele estourou, “isso” era caso grave? Assustar um pai porque o filho teria espancado uma prostituta? O delegado ficou impassível. Aquela era a... qual mesmo?, talvez a trigésima vez, só naquele dia, que ele ouvia uma barbaridade. Tentando manter a compostura e o profissionalismo, ele explicou que não se tratava de uma prostituta, o que não desmereceria o crime, mas uma trabalhadora doméstica, que estava no ponto de ônibus. E que a moça ficara bastante machucada.

O pai suspirou, bem, se era assim, que tal mantermos tudo entre nós, eu pago as despesas, tenho certeza que foi tudo um engano e... o delegado cortou-o com um prazer mal disfarçado: "agora é tarde, a imprensa já está sabendo, metade está aqui, metade no hospital". O pai quase derruba as paredes de ódio. E esbravejou tanto que o delegado ameaçou prendê-lo também.

Por fim, declarou, com a consciência limpa e a cara lavada, acreditando profundamente no que dizia, que seu filho era estudioso, de boa família e que, certamente, apenas se excedera na brincadeira, que mulheres ficam roxas à toa, que a história estava mal contada e que, provavelmente, ela fizera por merecer.

Esta é uma história com final feliz. Feliz para o rapaz espancador de mulheres, pois, acima de tudo, ele teve o apoio incondicional do pai (com quem, provavelmente, aprendeu que prostitutas existem para serem espancadas). Mas não tão feliz para a humanidade.

Que a Grande Mãe suavize com um pequeno toque de amargura o coração dos pais que encaminharam seus próprios filhos para as trevas.

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