QUANDO NÃO HÁ MAIS PERIGO
>> Leonardo Marona
para Julia
Pelo pouco que li e experimentei, sou obrigado a dizer que todo amor verdadeiro está fadado ao fracasso. Não nascemos para a comunhão do tempo, é essa a nossa inclinação mitológica - a dos amorosos - e nem mesmo nos damos conta disso. Um homem foi fadado ao fracasso por amor, sozinho numa cruz, e desde então não conseguimos mais deixar de copiar seus passos. Isso, é claro, vale para poucos. A organização do mundo nunca foi a organização do amor. Com a perda da ternura que nos fazia suar de amor por semanas, acabamos, de um modo ou de outro, assumindo novas ingrenagens: de repente importa mais agir do que experimentar através dos sentidos mais íntimos. E assim se fez o mundo em que vivemos. Os pobres adolescentes, doentes de amor, com os pés enraizados no chão e tão burros porque é impossível ser esperto e amar ao mesmo tempo, enfim, estas pobres criaturas antenas do contínuo comem um dobrado na mão de adultos que as empurram de encontro umas às outras como se olhassem seus relógios à espera do sino da igreja. Como cabritos atiçados em brasa as crianças desde cedo aprendem que há pressa e não há como fazer, mas é preciso fazer, não se pode perder a tróia de ferro da vida, esta mesma que ergue troféus e mata com história. Então estragam nossa força maior, nossa proximidade única do que rege os tempos imemoriais. Queremos antes nos rodear em ritual xamânico, dar voltas em torno do cheiro de nossos hormônios flamejantes, mas nos empurram e nos fazem homens.
Comigo sempre aconteceu assim, durante muitos anos me martirizei. Relações surgiam como poeira no deserto, voavam longe me arrastando em feridas arenosas, arrebatavam-me e exigiam atenção completa. Não era uma pessoa que fazia isso comigo, não uma pessoa em especial: era o fato de que qualquer relação amorosa deveria ter esta característica de vendaval por essência. Então eu caía nos mais irremediáveis precipícios. Devo ter tido umas dez namoradas no espaço de dez anos e, acreditem, isso está longe de me deixar vangloriado. Muitos anos passei, não só ouvindo dos outros, mas dizendo a mim mesmo que eu era um ser insuportável e que, mesmo quando me aturavam como martírio, eu dava um jeito de estragar as coisas, porque eu era desumano e uma pessoa fria, então achava que a ideia romântica de "escritor solitário" fosse uma possível explicação para todos os meus infortúnios.
Hoje em dia sofro o dobro, mas já posso me aceitar. E estou passando pela mesma coisa outra vez. Só que sei que é sempre a mesma coisa, mas outra coisa diversa. Porque deixamos de ser a mesma coisa que fazia a outra mesma coisa, portanto ela também muda de estado. E como é sempre a mesma coisa dentro de mim, mas eu nunca mais sou o mesmo, será sempre a mesma coisa, e sempre outra coisa diversa.
Estou me separando, amigos, era o que eu queria dizer desde o princípio, mas vejam: já não sou mais eu mesmo. Três parágrafos me deformaram para sempre, e precisarei seguir sem um pedaço, até o fim. Os desmanchados, os sobrepostos: assim deveriam nos chamar. E eu sei que, como eu, somos muitos.
Mas não quero que, por obrigação, sigam-me até o fim. Esta é uma canção desesperada e, como tal, tem aquela grave peculiaridade de só ser importante a quem a canta e, algumas vezes, à história. E esta, aprendi, é uma gradissíssima filha da puta. Seja a minha ou a do mundo, ou mesmo a do vencedor despercebido, tem sempre alguma coisa por trás. Não era o assunto da crônica, mas serve para o que eu preciso falar. Dessa coisa por trás. E cuja importância não sabemos de fato qual é. Porque é de uma importância que está além das nossas expectativas. E por isso as esperamos debaixo da chuva. Como esperei até agora. E aqui estou, na casa dela, enquanto ela dorme após uma noite de ritalina porque, afinal, estuda muito, estou aqui batendo este texto não como um escritor que quer (e até mesmo precisa) ter seu texto apreciado para não morrer. Aqui morro, então não me preocupo. Muito além de um Werhter, me encantei pelo provável, mas o provável nunca será possível enquanto for, em sua estrutura primeira, apenas provável. Por isso peço desculpas, não a ela, pois que seremos inseparáveis, mas a mim mesmo, o eu mesmo que sabe agir, e a quem o eu apaixonado atingiu covardemente, forjando o apenas provável como sendo possível, o que é bem diferente.
Aqui estou, acumulando frases, ouvindo Edith Piaf. Sim, Edith, aceitaria um cigarro, ou qualquer expiação. Baudelaire, a França inteira, por que não consigo compreender vocês, mesmo sendo como vocês? É a coisa mais brutal. A compreensão que vem do que não se vive. E assim me relaciono, porque, ao amar, não vivo. Definitivamente me arrasto. E que beleza haveria no maior dos clichês, a não ser que houvesse uma grande produção por trás disso ou uma grande vantagem para alguém que não o que ser sofrível?
Muito bem, existe uma tríade. Outros melhores já enlouqueceram por isso, e foram tratados como absolutistas, mas isso é algo totalmente diverso de um mandato. Em suma, sente-se isso antes mesmo de se pensar no assunto. Mas sempre encontramos assunto quando deixamos de sentir, que é quando, infelizmente, começamos a viver. Pois bem, vamos à tríade. Pode ser a mais óbvia, como pai, filho, espírito santo, que rege ou copia todas as outras de ordem mais grave, ecumênica, trágica enfim, porque lida com deuses - e não podemos com deuses. Mas existem outras tantas menos importantes, e portanto quase específicas, fulminantes a um só ou a menos gente, como Lou Reed, Iggy Pop, David Bowie; ou Lorca, Dali e Buñuel; ou mesmo Sofia Loren, Anna Karina, Brigitte Bardot; Neal Cassady, Ginsberg, Kerouac. Árvore, fruto, planta: em suma é isso.
E por que falo disso? Não é à toa, e não quero que me sigam. Digo pela primeira vez para compreender o que só é passível de ser compreendido em detrimento do agrado. Fato é que, com essa mulher da qual me despeço com grande dificuldade, fiz um vinculo ainda mais intenso que o da Santíssima Trindade. E, tocando no assunto, queira deus que eu consiga sair dessa. Porque a amo demais, e decidimos pela sensatez. Quando nos conhecemos, ouvimos Erasmo Carlos, trocamos as carteiras de cigarros de que dispunhamos (pois ela preferia o meu cigarro, e eu o dela) e isso foi tudo. Antes sabia apenas que ela fazia remo e vestia-se – conforme vi uma vez – como se fosse uma mulher dos anos vinte. Estes são os detalhes, mas vamos de uma vez à tríade.
Sexo, aborto, cama: aí está. Experimentem, é fulminante. Sem conversa, aceita-se o “pai” (sexo) como elo mais firme, como ente hipnótico, ao qual se agarra sem hesitação, pois que é o “pai”, o motivo, a primazia. Com o esmorecer sexual surge, repentinamente, o tédio (prefácio do filho), que melancolicamente decide-se sempre pelo que o levará ainda mais longe em sua desolação – e grandes obras de arte foram feitas neste estado ridículo de existência: as maiores, inclusive. E é o momento de refrescar-se também, ironicamente é o momento da morte. Disso nós devíamos saber. Mas as coisas são feitas para que não saibamos delas quando somos mais perspicazes. E com isso chegamos ao aborto (filho), já que ele sempre vem quando não estamos preparados, por mais que mintamos, e graças a deus! Tudo aquilo que vimos com calma, sem suar, retorna a nós como cobrança tardia do suor. E a morte é quando suamos sem saber. Paga-se um bocado, aprende-se nada. E chegamos imediatamente e sem deslizes à cama (espírito santo), porque uma parte, depois do vendaval, compra uma cama nova, enquanto a outra, como presente de despedida, financia o enxoval completo da cama de casal. Sempre dormiram em camas apertadas, foram felizes e infelizes, mas amam-se a ponto de lembrarem-se melhor das horas boas, porque são indulgentes e incansáveis os verdadeiros amantes, e, depois de tanto aperto numa obra anterior ao homem, podem por fim construir o lugar que não é mais o lugar do pai (sexo), mas do espírito santo, que é a cama espaçosa para caberem enfim todas as incongruências, quando já não há mais perigo.
Comentários
Meu medo, esta crônica,
a mesma dor e o mesmo aperto, meu caro,
Entendo suas palavras que foram tão bem colocadas, mas tão carregadas de tristeza, melancolia,frustração...Amigo, lhe pergunto, será que o amor existe?
Será que é possível acreditar ainda?
Adorei seu texto, porque nele também me encontrei.
Pâmella
pamellap.prime@gmail.com