LIÇÕES DE PAI [Debora Bottcher]

In memorian Rubens Böttcher
* 13/09/1946 / † 04/07/1998

Meu pai tinha o dom da alegria – o que não quer dizer necessariamente que fosse feliz; quer dizer que ele era capaz de rir e sorrir de coisas tolas, de continuar olhando o lado bom na adversidade, de persistir onde a maioria desiste.

Ele era um homem bonito: os olhos verdes, sempre brilhantes; a pele clara, os cabelos louros, um charme elegante no jeito de andar. Sempre gentil, galante, sedutor – um mestre, aliás, na arte de seduzir: quando conheceu minha mãe tinha sete namoradas.

Seu tom de voz era alegre, suave e ele raramente se alterava. Contava piadas (tinha um arsenal delas!) e vivia assoviando como se a vida se resumisse numa canção sem fim. Adorava Roberto Carlos e colecionava seus discos. Uma das imagens que guardo dele é a das manhãs de sábado, quando ele lavava os carros encarnando o próprio astro: a mangueira virava um microfone na garagem molhada. Eu ria muito...

Meu pai era um homem cansado. Penúltimo filho de imigrante alemão, foi criado com a rigidez da cultura européia num país tropical. Para ele, um homem de espírito e alma livres como minha avó, a infância e adolescência foram uma prisão de atribuições e responsabilidades. Ele estudou engenharia mecânica, mas exerceu a profissão por apenas dois anos: precisava da liberdade das ruas, bastaram-lhe vinte e poucos anos de quatro paredes delimitando espaços.

Meu pai fez muitas coisas: trabalhou na bolsa de valores, teve restaurantes, lojas de roupas, aviamentos, de materiais de construção, uma das primeiras casas de café nos moldes atuais, mais de vinte anos antes desse modismo: era um visionário. Nunca o vi sem trabalho, estava sempre em movimento - um olho no agora, outro no futuro. Meu pai lia muito e era um homem inteligente, cuja mente nunca parava de pensar. Mas a coisa que ele mais gostava de fazer, era desenhar projetos de casas e construí-las. Isso nos tornava quase ciganos: quando ele acabava de construir uma casa, já tinha planos para outra - muito maior e melhor. Vivíamos mudando...

Meu pai era um homem corajoso, que nunca se deixava abater. Para as pessoas com quem convivia, tinha sempre uma palavra amiga, um conforto, e uma história divertida pra roubar um sorriso, mesmo de quem estava às lágrimas. Ele enfrentava o revés de peito aberto, e parecia não temer nada. Suspeito de que essa última observação seja uma meia verdade: muitas vezes eu o ouvi andando de um lado a outro durante a madrugada, o que me remete a pensar que ele também travava batalhas para exorcizar seus fantasmas.

Claro: meu pai tinha defeitos, era humano e normal. Mas não vou me perder em listá-los, porque eles se perdem diante da grandeza de suas qualidades. Problemas familiares são inevitáveis e talvez sirvam mais para acentuar o melhor das situações e das pessoas envolvidas.

Quando aos 49 anos descobriu um câncer no fígado, tratou de resistir à má surpresa, driblar a tristeza (à própria e a nossa, especialmente à minha), reuniu suas forças e, resignado e valente, encarou a doença de frente: nunca reclamou da dor, dos tratamentos exaustivos, dos remédios amargos, da crueldade do destino – só da comida sem sal e da falta de vitalidade para praticar tênis, seu esporte favorito. Foi difícil vê-lo definhar, dia-a-dia sem poder conter o tempo. Foi muito difícil ver uma parte de mim partindo, virando névoas, sombras numa escuridão para sempre sem luz.

Treze anos se passaram e, de fato, nunca me recuperei dessa perda: todos os dias uma parte de mim chora essa ausência. Com meu pai aprendi de caráter, de humildade, generosidade, esperança, lealdade e verdade. Aprendi de perdoar – muitas vezes, a mesma pessoa todos os dias. Aprendi que sem trabalho não há sorte que nos acompanhe e que é preciso insistir. E todos os dias também me lembro que entre tantas coisas boas que minha memória abarca dessa figura tão especial para a minha vida, uma das lições mais importantes que recebi do meu pai foi a de que nada deve nos paralisar. Sempre haverão obstáculos, entraves, descaminhos; a questão principal é como queremos enfrentar isso tudo: deixando-se dominar ou resistindo bravamente. Nem sempre consigo me manter na segunda opção, mas me orgulho de ter o legado de alguém que, apesar de ventos nem sempre favoráveis, nunca se deixou ficar no chão...

Comentários

Marilza disse…
Débora, que linda estória. Você é uma felizarda porque apesar da perda, teve ganhos imensuráveis com a convivência de alguém querido, dinâmico, cheia de vida e esperança.
Debora, a perda sempre foi algo para a qual não fomos preparados.
Meu pai, eu comecei a perdê-lo a partir de quando o conheci, no útero ou em outra existência, nunca fomos próximos. Sei que a saudade é dolorosa, mas senti-la é sinal de que há muito de bom para se lembrar.
E sei que no plano em que seu pai está, ele deve sorrir sempre quando percebe a filha que criou.
Beijos
Unknown disse…
Que lindo, Debora...que bom que seu pai teve uma filha com o dom de transformar sua história em tão lindas palavras!
Meninas, Obrigada, sempre, pelo carinho. Escrever sobre meu pai diminui um pouco a saudade - nunca passa, mas ameniza. Um beijo.

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