Dizem por aí que o país foi à lona, ao invés de ir à forra, e que por isso morremos pela boca, já que demos de mastigar indiferença há tempos. E que me desculpem, mas apenas se quiserem - se realmente quiserem -, os que assinam embaixo de tal declaração. É que o meu país jamais morrerá por falta de desejo de continuar em pé. Não será nocauteado ou irá à forra, porque ir à forra é também comandar revoluções desimportantes. Meu país, esse que vai além do país-umbigo, que nem dá bola para país-megalomaníaco, é sonhado a cada noite, e até durante o dia, por sonhadores conectados pelos desejos coletivos: praças, jardins, alamedas, casa, comida, educação, felicidade, e nem me venha rotular colando a palavra na minha testa, tentando me fazer parecer atração principal do circo dos horrores sentimentais. Não se trata de utopia, mas do fato de que o sonho tem alimentado as grandes realizações que hoje comandam a nossa realidade, até mesmo essa precária realidade que teima ser a principal, de ficar à vista. E que é desentendida com a capacidade do ser humano em ser humano.
Realidade é um tanto de sonhos desabrochados. Qual cor, tempero, cheiro você quer que a sua tenha?
Dizem por aí que a decadência será a rainha das próximas décadas, abastada que anda, sendo admirada por tantos, por aqueles que temem que ela se exploda e não tenha mais as migalhas para oferecer. A decadência vive entre nós desde sempre, balançando sua saia puída, fazendo-se presente na concepção dos nossos planos, rasgando o verbo quando a vez é do silêncio. Por isso mesmo não lhe confio o meu destino. A decadência é o deslumbre pelo ócio, a paralisia da capacidade de nos emocionarmos. Enquanto houver movimento – os lábios, os cabelos, os pés, os sentimentos, as mãos, as palavras gritadas ao vento, os toques, os assovios... – haverá também a opção de a decadência viver sua existência esnobe em algum canto, solitária, desprovida do direito de se alimentar da gente. Viverá em algum lugar distante o suficiente para que não lhe reconheçamos a existência, permitindo-nos não limitar na constatação errática de que ela, a decadência, é mais forte e competente que a vida que escolhemos viver.
Na minha vida cabem horas e horas de labuta em prol da inexistência da decadência.
Dizem por aí que a arte deixou de ser criativa por ter sido apropriada por homens que sabem fazer chover dinheiro... Mas apenas em seus bolsos. Que o que vemos – escancaradamente – é o que temos. Há quem lamente a herança que deixará aos seus, declamando a tristeza de haver apenas sucesso criado, arte descartável, descaso pela criatividade. Compreendo esses momentos de desconsolo, em que tudo parece cinza e definitivo. Quem já não se viu aliciado por eles? Mas como acreditar nisso ao se deparar com aqueles que, mediante todas as provações possíveis, levantam-se dos tombos, protegem os seus – afetos e sonhos e planos e desejos – dos rompantes da fatalidade, tirando da experimentação constante que há na vida o principal ingrediente para a sua criação. E pintam cenários em muros, dançam pelas ruas, criam canções, histórias, constroem relacionamentos para o sempre. Percebem a vida com a intimidade de quem não teme sua fragilidade ou sua intensidade. Quem quiser que olhe a sua volta, que procure além dos holofotes, que se permita reconhecer que não... A arte não deixou de ser criativa. Apenas os olhares não a enxergam onde ela realmente mora nos dias de hoje, linda, vestida com liberdade.
Dizem por aí que o amor já era. Pobrezinho, anda sozinho, abandonado pela coragem do homem de abrir mão da conveniência e se atirar às turbulências que esse sentimento oferece. Que melhor é permanecer distante, porque o amor tem a capacidade de amolecer coração e nos fazer de bobos, e de nos deixar à mercê das enganações, das trapaças emocionais. E para que se machucar quando há a opção de se proteger? Para que correr o risco de acreditar? Não sei... O amor, na minha humilde visão, vai além do que dói na gente. Não fosse ele, a existência seria árida. Não haveria olhar compartilhado, afeto, compatibilidade. As tribos seriam pessoas vivendo em torno do que as mantêm respirando. A empatia seria artigo para solitários rotulados insensatos, loucos até. E eles acabariam mesmo por enlouquecer por não compreenderem por que sentir o que sentiam. O sorriso da criança inexistiria na sua forma de tenra alegria. As mulheres iriam parir somente cidadãos, ao invés de filhos. Os homens alimentariam estatísticas e não sua prole. O amante não escorregaria sobre o corpo da amante com a languidez do desejo. Seríamos máquinas de carne e osso. Então, como acreditar que amor, apesar de todas as tempestades que ele causa na vida da gente, pode acabar? Enfim, na minha humilde visão, o que dizem por aí nem sempre é saudável ou verdadeiro. Nem sempre descreve o que temos ou desejamos.
o cara esbravejou de quem é o carro branco e eu seguia focado nos números pingando no visor, não me atentei, ele repetiu, mais específico: o clio, olhei para trás e só um carro branco e só um clio no estacionamento e era meu, ergui o braço direito, como na classe da quinta série e esclareci é meu, ele exigiu que o removesse de lá, pois atravancava o acesso dele ao outro veículo, o do lado, quando me levantei, aluado, derrubei todos os envelopes e a vizinha me auxiliou, recolocamos no banco, empilhados, desfilei vagarosamente até a porta do automóvel, à guisa de provocação, atendi o pedido, feito até de forma atabalhoada, acumulei uns apoios do público, dada a cena repugnante para as nove e trinta da manhã, mas nem me importei, a desfeita me coube como vingança, entretanto, nada é assim, essa empatia conivente não integra o comezinho da realidade, e danei a cismar, eu não me reconhecia possuinte de qualquer coisa, é até lugar-comum este silogismo, para ser chique: existiam o papel pass
aluguel dos mortos?, quem há de cobrar de quem?, não mexe com quem está descansando: espólio, usufruto, parceria público-privado, essas denominações faustosas, evoco genet: pompas fúnebres, e muitos defendiam, não aponto dedo, mas tenho certeza: eles defendiam a privatização: vende os correios, vende a casa da moeda, a ceagesp, a dataprev, a vale, a embraer, o banco do brasil, vende a petrobras, vende a eletrobras, vende o pretobrás, ah, não, itamar assumpção não se vende, mas quem imaginaria que diminuir o estado fosse isso, entregar cemitérios?, enxugar jazigos?, e se não quitarem o boleto todo mês, sumirão com os ossos, deixarão, talvez, à disposição: não seria melhor que aprovassem o home cemetery?, em vez do home schooling, do home office?, mas não gostaram, foram, inclusive, até a sucursal da globo e, nada: lá são a favor da cessão (outro termo sofisticado), foram à subprefeitura, foram à igreja, foram ao ministério público, mas não tem jeito, o contrato foi assinado, inês é mo
Eu lia. Aí me apareceu uma frase com ela: girândolas . A frase, da crônica Crônica de Natal , de Antônio Maria, era a seguinte: “Os foguetes, as girândolas, as chuvas luminosas, tudo era para me enganar. E eu, calado. Minha vidinha secreta e atenta já desconfiava do silêncio desdenhoso”. Girândola. Confesso que nunca tinha visto o verbete que me remeteu a girar, a algo que gira. Pensei, deve ser mais uma dessas belezas que sumiram do vocabulário nacional. Segundo o Houaiss, girândola quer dizer roda ou travessão onde são postos foguetes para serem queimados ao mesmo tempo; o conjunto desses foguetes quando sobem e estrelejam simultaneamente no ar. Que beleza!, pensei, e descobri por que o verbete sumiu de cena, recordando-me da igreja, dos tempos em que os foguetes eram disparados nas grandes festas. Outra beleza que pouco vejo ou ouço por aí: madrigal . Há uma música de Roberto Carlos, Meu Cachoeiro , onde ele cita o verbete: "A minha escola, a minha rua, os meus primeiros ma
Comentários
é preciso arte para enxergar através do cinza e da utilidade.
Beijo.
Bjs
Marisa... E eu lhe agradeço pelas palavras.