DIA DOS SORRISOS E DAS CANÇÕES
>> Carla Dias >>

Das tantas coisas que nos acontece, diariamente, uma e outra certamente são boas, trazem sorrisos e amansamentos. Complicado é, em meio a essas tantas coisas, mergulharmos e trazermos as boas para a superfície.

Eu estava no ponto de ônibus, com meu player e meus fones de ouvido, Dave Matthews Band, Ella Fitzgerald e The Swell Season no playlist. Neste dia, eu não quis voltar pra casa de metrô, porque às vezes sinto uma saudade imensa de ver a cidade através da janela do ônibus. Então, nem me importei se a espera era de mais de quarenta minutos. Eu escolhi a espera e a jornada.

Cerca de dez minutos depois de eu chegar ao ponto, aproximou-se essa senhora, sessenta e poucos anos, miúda, cabelos brancos, roupas puídas, sorriso banguela. Começou a falar comigo bem na hora em que o Dave Matthews cantava One sweet world/Around a star is spinning /One sweet world /And in her breath I'm swimming /And here we will rest in peace. Mal terminei de cantarolar mentalmente, tirei os fones e pedi que ela repetisse o que disse: o Ceasa para aqui?

Sim, o Ceasa para aqui, e ela sorriu, eu sorri de volta e coloquei meus fones nos ouvidos, voltando a ter trilha sonora para os meus pensamentos, porque sou das que pensam e sonham demais enquanto escutam música em transportes públicos e durante passeios a pé.

Glen Hansard, do The Swell Season, cochichando nos meus ouvidos: You are restless/ I was somewhere less secure / So I went running to the row / And so now that the longest of places I was / I quit my rambling and come home. Então, vem Markéta Irglová para acompanhá-lo: ‘Cause maybe I was born to hold you in these arms. A música é linda e eu adoro esses dois, mas antes de respirar fundo e me reconhecer na música e na letra, percebi que a senhorinha falava comigo novamente. Tirei os fones, e pedi que ela repetisse:

O ônibus demora demais, né? Tá doido...

Concordei com ela, até porque a senhora não sabia que eu aceitara a espera em troca de uma boa viagem com direito à janela de ônibus, e que eu estava em paz com isso. Esperei alguns segundos, para ver se ela tinha algo mais a dizer, mas ela apenas sorriu, eu sorri de volta e coloquei os meus fones nos ouvidos.

O Dave Matthews mal começou a cantar uma das canções da DMB que eu mais gosto, I’ll back you up, vi a senhora sorrindo. Achei por bem manter os fones nos ouvidos, até porque ela não disse nada, apenas sorriu para mim. Eu sorri de volta. E antes de conseguir voltar a atenção para minha jornada interior, ela começou a fazer alguns gestos.

A essa altura, a senhorinha já tinha percebido que eu estava ouvindo música. Desta vez, para não me forçar a tirar os fones, ela decidiu gesticular. O sorriso a tiracolo, ela começou a balançar o corpo, como se estivesse dançando, e com os braços, simulava a presença de seu parceiro de dança. Ela dizia: música, música, bom..., como se eu fosse uma estrangeira e ela não soubesse meu idioma. E eu, que acabei envolvida pelo astral dele, respondi: bom mesmo!

As duas gargalhando, ela dançando e eu avistando o ônibus, dando sinal, e me despedindo da senhorinha do jeito que ela gosta: sorrindo. Pensei, logo que botei os pés no ônibus: tomara que o Ceasa venha logo.

Dentro do ônibus, a seleção já era a dela. Ella Fitzgerald me levou sei lá aonde cantando, lindamente, Blue skies / Smiling at me / Nothing but blue skies / Do I see. Olhar jogado pela janela, vendo pessoas e lugares, e a agitação preguiçosa de um domingo à tarde. Deu-me vontade de sair dançando, enquanto Ella improvisava nos vocais, daquele jeito que somente Ella sabia fazer. Imaginei como seria se eu me levantasse e começasse a dançar no corredor. Alguém chamaria o cobrador? A polícia? Os agentes da saúde mental? Ou simplesmente me deixariam cumprir o papel da minha felicidade, como a senhorazinha no ponto de ônibus fez.

Ainda estava na Lins de Vasconcelos quando ele entrou. Não houve como não notá-lo, porque ele entrou no ônibus armado com um sorriso lindo que só. E não há como ignorar um sorriso daqueles. Pensei que, talvez e em especial, aquele era o domingo dos sorrisos escancarados.

O moço se sentou no banco em frente ao meu. Ella cantando: He'll look at me and smile / I'll understand / And in a little while / He'll take my hand / And though it seems absurd / I know we both won't say a word. E fiquei pensando: será que este é o moço da canção?

Não sei vocês, mas eu já peguei ônibus depois de receber notícia muito boa. A vontade é de sair contando a novidade aos estranhos, como se fosse explodir de tanta vontade de gritar, de compartilhar a benevolência do destino ao conceder felicidade. Mas enquanto seguro a onda para endoidecer mais adiante, na companhia dos que me querem bem, não consigo parar quieta.

Ella Fitzgerald quebrando tudo: I'm talking to the shadows / 1 o'clock to 4 / And Lord, how slow the moments go / When all I do is pour / Black Coffee / Since the blues caught my eye / I'm hanging out on Monday / My Sunday dream's too dry, e o moço inquieto, remexendo papéis que trazia nas mãos, olhando pela janela, mas quase virando-se para mim… Para contar segredo bom? E rindo sozinho, remexendo nos cabelos, louco para revelar o motive da sua deslavada felicidade.

O moço desceu do ônibus, e mais quieta, colhendo paisagem com o olhar, já próximo ao meu ponto, Ella Fitzgerald mexeu comigo mais profundamente ainda: And now, now you say you love me / Well, just to prove you do... / Come on! / And cry cry cry me a river... / Cry me a river / ‘Cause I cried a river over you.

Talvez fosse mesmo um domingo ímpar, daqueles em que, sem me esforçar, consigo separar as coisas boas de um dia repleto de distrações menos agradáveis.



Comentários

albir disse…
Carla,
qualquer encontro banal, qualquer ponto de ônibus, qualquer fato sem importância fica interessantíssimo se capturado pela sua narrativa. Beijo.
Carla Dias disse…
Obrigada, Albir!
Há dias em que olhos e ouvidos e todos os sentidos - poéticos ou proféticos - estão atentos. São bons dias os tais...

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