ARRUMAÇÃO INTERNA >> Carla Dias >>

"Queria o jardim dos meus sonhos, aquele
que existia dentro de mim como saudade.
O que eu buscava não era a estética dos
espaços de fora;
era a poética dos espaços de dentro."

Rubem Alves


Decidi melhorar quem sou. Sei que faço isso o tempo todo e que já publiquei aqui algumas crônicas a respeito. Porém, devo dizer que essa busca muda com o tempo.

Tudo tem a ver com o andar da carruagem, a cadência, o passo do anjo, aqueles bois que colocamos na frente da carroça, durante a vida, até esse ponto.

Ponto cruz, e não se trata de papo sobre agulha e linha.

O ponto cruz é aquele ponto em que você percebe que, lá na lojinha da sua consciência, você escolheu a cruz mais pesada para arrastar. E enganou a si mesmo, porque achava que escolhendo a cruz mais pesada, a mais complicada de encaixar nos ombros, seria uma pessoa digna de levar uma vida em paz e com prosperidade.

Eu sempre fui partidária de que Deus dá a cada um a cruz que pode carregar. Porém, com o tempo, com a vida acontecendo, dei-me conta de que, além da cruz que nasce conosco, nós visitamos essa lojinha e compramos uma extra.

Por isso decidi melhorar quem sou partindo do princípio de que basta a cruz que ganhei quando nasci, e que, vez ou outra, pesa tanto que me faz cair de joelhos diante dos acontecimentos. E às vezes quase não pesa, parece casaco fino aquecendo em dia de outono.

Comecei este novo processo tentando ser uma pessoa espiritualizada, indo além das velas perfumadas e dos incensos, da leitura do horóscopo de jornal e de assistir filmes sobre vivos que falam com mortos. Na verdade, eu sempre fui uma pessoa com uma ligação muito forte com os assuntos espirituais, com a filosofia sobre o que não podemos definir, com a metafísica. Santos e demônios me fascinam. Porém, de alguns anos para cá, afastei-me dessa espiritualidade toda. Não a questionei, sequer me tornei descrente. Simplesmente me afastei dela, como fazemos quando estamos cansados de sentir tantas coisas ao mesmo tempo, como se elas fossem tempestades sem fim.

Dediquei-me, então, a agravar o que já não era muito fácil, atentando, com mais ardor, para importâncias que nem eram realmente importantes. Errei a mão em sei lá quantas escolhas, simplesmente porque elas envolviam assuntos que não me interessavam tanto assim, mas que fazem parte da minha realidade coletiva. Piorei, e muito, a minha relação com a pessoa que me tornei. E se eu já tinha o hábito de falar comigo mesma, como se um clone de mim estivesse presente, bom, isso ficou ainda mais frequente. Não falava mais apenas com a televisão. Passei para altos bate-papos, críticos e cruéis, com a minha consciência abstemia de capacidade de perdoar.

É fato que é muito difícil para alguns serem gentis consigo mesmos. Eu não levo jeito para ser gentil comigo, o que é uma pena, porque todos deveriam exercer esse direito. Por isso, decidi melhorar quem sou... Quem sou no trato com a pessoa que me tornei. Há mil e tantas questões para resolver, e sei que a maioria vai se perpetuar pela minha vida, jamais serão resolvidas. Permanecerão mistérios.

Tive uma conversa com uma amiga na qual insistia que estava ficando velha, porque a minha paciência, ela que sempre foi tão comportada, anda se descabelando, fazendo cena. Durante sei lá quanto tempo ao telefone, contei a ela sobre uma série de acontecimentos que me aborreceram em uma semana que achei que jamais terminaria. Confidenciei a ela o meu cansaço no trato com as pessoas, aquelas que simplesmente ignoram quando digo não, porque durante muito tempo eu apenas disse sim, ou que acreditam que tenho a obrigação de estar disponível para elas e seus problemas sempre, mal dando ouvidos aos meus. Então, ela me disse uma coisa interessante... Disse que eu não estava ficando velha, não no sentido que dei à minha alegação, porque não há problema algum em se envelhecer. É o destino de todos nós. Ela disse, do jeitinho dela, que eu estava apenas começando me permitir fazer escolhas relacionadas ao meu tempo, de como quero passá-lo, ao limite que todos nós devemos ter para não nos perdermos na vida de outros, mesmo quando esses outros não percebem que também nós precisamos de sim, de colo, de tempo, de companhia, de compreensão.

Para melhorar quem sou vai levar um bom tempo, até porque pressinto, melhor, sinto o meu espírito mais a fim de voltar ao que tanto lhe encanta: ao mistério da existência, ao questionamento sobre o bem e o mal que habitam cada um de nós, esperando que façamos a travessia pela vida, escolhendo o caminho que melhor nos cabe.

E chego neste ponto cruz... Vale dizer que ele é simples, mas opera milagres quando se trata de agulhas e linhas. Mas no meu ponto, estaciono a cruz que escolhi carregar, lá na lojinha da minha consciência, achando que daria conta. Daqui em diante, carregarei a que me foi destinada, e talvez assim sobre algum tempo para que, estando decidida a melhorar quem sou, eu consiga fazê-lo.

carladias.com

Comentários

Carla, essa segunda cruz, que você está abandonando, chama-se "consciência sobreposta" no Pathwork. É difícil imaginar um passo espiritual mais largo do que esse. E ainda ser capaz de, ao deixar a cruz no chão, produzir não um ruído, mas a poesia desse belo texto, aí você não deu um passo, e sim realizou um salto de bailarina. :)
Unknown disse…
Carla, preciso tanto, tanto, tanto mudar. Abandonar cruzes e ser uma pessoa melhor. Seu texto é um delicioso convite a tentar. Pena que sou tão burra...
Marilza disse…
Carla, me vi em muitos momentos no seu sensível texto. Aprender a dizer não, a se permitir certas coisas, depois de tempos aceitando as coisas passivamente, é dificil. Mas não impossível.
albir disse…
Pelas minhas contas, Carla, vou precisar de muito tempo para produzir alguma melhora. Não sei se vai dar tempo,rs...
Carla Dias disse…
Eduardo... Só você pra dizer bonito o que mete medo : )

Fernanda... Burra nada! Esse é o tipo de coisa que, inevitavelmente, acontece com a gente. Quando acontecer com você, vou ficar sabendo aqui, né? Beijo!

Marilza... só de não ser impossível vale a tentativa, não é mesmo? Então, vamos seguindo...

Albir... Sempre dá tempo! A melhoria é inevitável para quem topa ver a vida mais de

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