SAUDADE DO CÉU >> Felipe Peixoto Braga Netto

"A morte não
existe para os mortos."
(Carlos Drummond de Andrade)

Eu acredito no céu. Não falo nesse aí, azulão, em cima de nós, por onde passeiam os aviões. Falo em céu mesmo, céu de criança, aquele para onde vão as pessoas boas quando morrem, ou pelo menos assim mandam dizer às crianças.

Sim, é uma bela ideia. Muito verdadeira, suponho. Digamos que ele realmente exista, lá num lugar secreto, que só saberemos quando não podermos voltar pra contar. Sim, partamos daí. O que será que lá estarão fazendo, agora, meus amigos? Não falo dos amigos conhecidos, amigos do dia-a-dia, até porque, honestamente, não tenho tantos. Já tive, mas... Não, não desviemos o rumo da vela.

Fico vagabundamente pensando: o que estará fazendo, agorinha mesmo, lá no céu, Rubem Braga. Sim, velho Braga, penso em você, com afeto viril de irmão mais novo, que não te conheceu, mas que te quer bem...

E o Paulinho Mendes Campos, teu camarada? Vocês tem se visto por aí? Há belas mulheres no céu, Rubem? E mar? Há mar no céu? Creio que tua cachacinha, tão amada, não seja permitida por aí. Mas há outras seduções, suponho, que nós, aqui do aquém-túmulo (a expressão é de Rosa), não podemos sonhar. Não é assim?

Aliás, não foi ele quem disse que ficamos todos encantados? Como é ser encantado? Assim, em princípio, me parece coisa pouco máscula. Você sabe... Nasci no nordeste. Vá lá, encantado em tese, tudo bem. Mas encantado mesmo, como é que fica? Acho que divago, não? Perdoe minhas bobagens, vou me agarrar em coisas reais.

Mulheres há, não? Tem de haver. Nem todas estão quebrando pedra no inferno, ora! Aqui entre nós, eu digo baixinho: a vida (minto, a morte), sem elas, perde o sentido. Pelo menos eu acho. É possível que vocês, anjos que são, achem tudo isso uma tolice de vivo. É possível. Nossas opiniões são elas e suas circunstâncias.

Fazer poesia no céu deve ser mais fácil. Suponho. Sabe como é, em cima das nuvens, com uma visão, digamos, mais privilegiada das coisas... Deve inspirar pra burro, não? Murilo Mendes sentenciou: não poderá ser poeta quem nunca sentiu saudade do céu. Então eu posso, porque, puxa, ando com saudade daí. Ou do que eu imagino que seja. Mas passa.

Estive pensando... Morto, imagino, tem superpoderes. Eu, quando chegar, também quero. Não, não é olhar de raio-x não. Não quero ver as anjinhas em trajes sumários. Também, que ideia vocês fazem de mim! Talvez aceitasse ler os pensamentos alheios. Isso acabaria com o dilema daquela frase clássica de Skakespeare: "Não passam de traidoras nossas dúvidas, que às vezes nos privam do que seria nosso se não tivéssemos o receio de tentar" (Medida por medida –1604/1605. Ato I. Cena IV: Lúcio).

Acho que ando mal. Citando o poeta inglês... Atribuindo-me evidentemente um ar culto, logo em frente de quem? Mortos, que tudo sabem, e veem bem a fraude que se esconde atrás desse verniz torpe.

Mas me redimo do mau proceder dizendo: estou com saudades... Saudades, bem, é verdade, não é o termo apropriado. Nem chegamos a nos conhecer, se conhecer o outro exigir apertos de mãos, conversas tolas sobre o clima, etc. É, isso não tivemos. Em contrapartida, há pessoas cujas mãos apertamos com lamentável frequência, e não nos conhecem nem, a rigor, disso fazemos questão.

Tivemos, minto, eu tive, um contato terno com vocês. Eu os estimo verdadeiramente. Nos momentos decisivos, é com vocês que converso. Pergunto: "E aí, Paulinho, que fria, não? Já esteve em situação semelhante?" E sinto uma mão amiga, um fraterno entendimento a me amparar. Ou então penso no Braga. Esse é casmurro, todos sabem. Não dá muita atenção a meus pleitos. Aprendi, porém, a gostar dele assim, com seu cordial mau humor. Não seria o Braga se fosse diferente.

Confesso? Não sei se devo... Vá lá! O que queria, queria mesmo, era escrever um livro (um livrinho de literatura!) e tê-los no dia do lançamento, na noite de autógrafos. Não precisavam comparecer sorrindo não. Podiam ir de má vontade, falando, naturalmente, muito mal do livro, incomodados com o abuso do convite. Mas queria... Desejo não se discute. Ponto final.

Se não forem, tudo bem... Nem assim ficarão livres de mim. Sim, porque os chatos também morrem. Não quero excepcionar regra tão cara a Deus. Chegarei, cheio de curiosidades de vivo, roubando-lhes o tempo (que aliás não lhes falta) – eternidade é pra essas coisas.

Há quem pense bobagens sobre a morte ("Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada", disse, certa vez, a natureza). Não, sei que não é assim. Sei que vocês estão, sim, por aí. Sei que um dia ainda lerei coisas aborrecidas, irônicas, ternas, do velho Braga. Lerei a cultura doce do Paulinho. Quem sabe um poema de Drummond sobre a distância do céu?E o Mário, esse furacão de pensamento, ágil, generoso, feliz. Onde estará?

Porque morrer... Morrer não é coisa ruim não. Isso de morrer não tem importância – explicou Mário de Andrade, já que falei nele –, o importante é viver um pouco agitando e encantando a vida. Eu, do aquém-túmulo, concordo. Também não tenho pressa. Preciso de certo tempo para desenvolver a arte.

Ah, e o Bandeira, com seus versinhos tão poesia, tão parecendo simples, e tão eternos. Anda escrevendo muito? Chega, não vou cair na tentação fácil de querer, que diabo, citar todo mundo. Ponto final. Vocês que são mortos que se entendam! (Que mania, essa minha, de querer agradar o céu e a terra!).

Eu do céu só conheço o que vi dos aviões – e reconheço que achei bonito. Espero que, no céu dos escritores, vocês tenham ganhado umas nuvens boas. Sim, porque cada um tem a nuvem que merece, não? Seria engraçado imaginar as nuvens... A do Braga deve ter uma vista humilde para o mar, talvez um lugar para pescar peixes e algumas ingênuas alegrias. A do Paulinho, como é a do Paulinho? Será que ele, fantasma bom e tímido, dá uns sustos nos vivos? É uma boa ação, pois há, aqui na terra, vivos bastante mortos, precisando de vigorosos sustos.

Ah, ia esquecendo. Quase caio duro! Estava lendo, velho Braga, por acaso, um roteiro com suas atividades intelectuais enquanto vivo (o que foi, o que não foi, os cargos que ocupou, essas coisas) e lá me deparo com uma informação espantosa. Vou transcrevê-la literalmente para que não pensem que faço graça:

"1962 – São Paulo SP – Ator do filme "Pluft, O Fantasminha", de Jean Romain Lesage, baseado em peça homônima de Maria Clara Machado".

Braga, não é que você foi ator? Mas quem diria... Eu botava a mão no fogo que não. Esse seu jeitão emburrado, pouco loquaz... Ator! Na certa você foi o fantasma, não? Era você o Pluft? Um fantasma cordial, como você diria. Então você tem experiência! É, rapaz, pensando bem você daria um bom fantasma. Esse tal de Jean Romain Lesage devia saber das coisas.

Ah, doces amigos ausentes, a terra continua o que foi, confusa e vulgar. Sim, há coisas boas – esse azul muito puro, esse mar infinito, essa lua gentil. Mas disso não falo para não inspirar saudades. Desejo-lhes (vocês merecem) o céu dos bons, com uma pontinha de saudade daqui, mas longe das pobres aflições serenas. Ah, e amigos se visitam! Como eu não chego aí logo (espero), vocês bem que podiam – de vez em quando, quem sabe – dar um pulo aqui, ver o mar e os netos, e, puxa, me ver também. A passagem não está cara e a distância não é tão grande. Não para quem pode voar. Façam isso, tomem o rumo do sul, e dêem uma olhada nessa vida sem rumo. No mínimo é uma boa ação, e fantasmas cordiais vivem disso.

Comentários

Tenho certeza que "eles" adoraram a crônica, Felipe. :) E, escrevendo do jeito que você escreve, o céu deles um dia será o seu céu. :)
Sam Green disse…
Hauhauhauha,
adorei a crônica Felipe.
Genial!
Só você mesmo.
Fantástica.
Abraço.

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