CARNAVAL [Debora Bottcher]

"Quanto riso! Oh! Quanta alegria! / Mais de mil palhaços no salão..." (Trecho de 'Máscara Negra', de Zé Kéti)

Quase todo mundo com mais de 30 anos teve uma infância e/ou adolescência que vibrou ao som das marchinhas de carnaval.

Para mim, a Festa do Rei Momo sempre teve um inexplicável ar de melancolia. Máscaras e sombras desfilando, abrindo passagem para a orgia. A nudez vestindo-se de luz e purpurina, brilhando e despertando sensações – aquelas que ficam guardadas nos sótãos da alma, o ano inteiro escondidas... Fantasias...

Atrás da maquiagem, dos véus e das cores, pode-se ser quem quiser: o palhaço, a bailarina, o pirata, a feiticeira, o índio, a cigana, o super-homem, a fada madrinha. Cada um vende seu sonho e vive sua loucura, despido de cotidiano, alheio à preocupação.

Dos salões de baile às avenidas, a mentira é soberana: ela governa os cinco dias do ano em que tudo é permitido. A quarta-feira - e só depois do meio-dia - é que aciona o botão da realidade novamente.

Eu me lembro das nossas noites de carnaval. Meu pai, diretor de um clube de elite em Campinas, tinha mesa especial reservada. Vestida a caráter - e isso quer dizer Odalisca, Havaiana, Bruxa ou Mulher-Gato -, eu cruzava a entrada principal de braço dado com ele, muito antes da idade permitida de fato, para freqüentar os bailes luminosos.

Acho que era mais nisso que residia o encanto pra mim: burlar as regras. Porque, na verdade, não posso dizer que efetivamente me divertia. A música muito alta, depois de umas duas horas, começava a me incomodar; o empurra-empurra também não me deixava confortável, assim como os excessos (de bebidas e afins).

Tudo isso ia me deixando um tanto cansada. Eu me sentava então num dos degraus da imensa arquibancada de concreto, bem lá no alto, para observar a desordem instalada: rostos borrados, corpos suados, adereços em frangalhos. A beleza inicial desvanecida, perdida entre confetes e serpentinas.

De longe eu avistava meu pai tentando me encontrar no meio da confusão. Peguei-me pensando agora, enquanto escrevo, se em algum momento ele adivinhava que eu não estava lá - já que quando eu retornava para junto dele, nunca estava desgrenhada como a multidão. Às vezes, dançávamos juntos no espaço próximo às mesas: isso era bom - seu riso aberto, a alegria nos enlaçando.

Mas eu ainda era jovem (ia completar 18 anos) quando o carnaval perdeu completamente o glamour e eu não quis mais ir aos bailes. Meu pai, que era muito festeiro, tentou me convencer a mudar de idéia e se entristeceu um pouco quando não me dissuadiu - e eu só o acompanhei mais uma única vez depois disso, em 1998, quando ele, já em fase terminal, quis dar uma última olhada no que chamava de 'a maior festa do ano'.

Fato é que o tom da amargura que me invadia desde os primeiros tempos, foi se agigantando e eu me dei conta de que não havia fantasia capaz de burlar aquela desencantada emoção. As cinzas da quarta-feira me consumiam muito antes de tudo começar e eu pensei que estar quieta durante aqueles dias, era o jeito certo de acalmar o interior melancólico sem razão.

Talvez tenha sido um certo Pierrot. Talvez a minha Máscara Negra. Quem sabe uma enrustida saudade, um beijo que nunca aconteceu. Ou a lágrima que ficou engasgada e assim desmanchou de vez a ilusão.


Imagens: Carnival Mask, Luca Da Ros; Carnival Masks, Eye Ubiquitous; Carnival, Venice, Italy, Guenter Rossenbach


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Comentários

Debora, semana passada deixei de escrever uma crônica sobre Carnaval. Ela falaria sobre medo. A sua não fala de medo, mas tem o mesmo espírito da crônica que eu escreveria: uma ausência de empatia com essa festa que mobiliza algumas pessoas. Grato por ter escrito o que eu já tinha desistido de escrever. :)
Juliêta Barbosa disse…
Débora,

É sempre bom quando nos encontramos em palavras que não foram ditas por nós. Isto significa que a linguagem da alegria, da tristeza, da beleza, é uma só para todos nós. Mas, bom mesmo é quando tudo isso é dito com tanta propriedade.Parabéns. Gostei do seu texto. Simples e direto.
Unknown disse…
Débora querida,
Carnaval são apenas 4 dias de folia, ou como você diz, de melancolia. Mas, a gente tem um ano inteiro pra desengasgar a lágrima, fazer o beijo acontecer e despir - ou vestir - as máscaras. O que não podemos deixar de ter, no Carnaval ou no ano inteiro, é a capacidade de produzir alegria.
:)
beijo grande!
Anônimo disse…
Alegria também se produz no silêncio. Linda crônica! Depois do carnaval ninguém mais vai cantar canções e nem vai criar juízo. O povo brasileiro é um copo de mágoa já transbordado e quer agora fugir do real para encontrar um pouco de alegria.
Parabéns!

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