Poemas para dançar ciranda >> Leonardo Marona

Era melhor jogar fora as máquinas, esquecer os vestígios poéticos, não mais abrir o livro sagrado de cetim, queimar o caderninho de anotações. Assim eu me sentia, porque Alice havia chegado e Alice havia partido, mas a presença posterior de Alice em mim permanecia um mistério, um oco incompreensível.

Ela apresenta já na porta do bar, enrolada num cachecol com uma camisa xadrez de flanela e os cabelos recém cortados, uma poderosa meticulosidade aliada a um charme quase infantil, de quem nem mesmo sente que abala, mas no fundo sabe.

Isso é aparentemente revoltante. Como se não restasse mais nada que lhe pudesse tirar o centro da ação, fazê-la tremer as pernas, e eu já tremia há mais de meia hora enquanto ela não chegava. Estava nervoso, sem saber o que falar com uma garota mais nova do que eu, de uma outra geração (seis anos são quase dez), então decidi chegar antes para reler sua Dobradura (Ed. 7Letras), que tinha acabado de sair do prelo, o primeiro filho dela, ela que era ainda tão jovem, mesmo o corpo ainda em formação, tão parecida com o que seu "Retrato" havia pintado, com os pés realmente grandes em comparação ao resto do corpo aparentemente frágil.


Mas é só aparência porque Alice é do tamanho do seu pé, com a inquietação das unhas roídas até o talo. É tudo pura locomoção de gato, sobre o que ela escreve bastante, aliás, gatos, sua postura indiferente, plácida, levemente superior justamente porque não se importa em ser humilde.


Não pude ver as sardas sobre as quais dizia seu poema, mas percebi a postura elegante de uma dama requintada, que aprende piano desde cedo (ela, de fato, tocava Bach aos sete anos) e tem a risada que leva a mão à boca com leveza, quase com rubor. Mas não é contida, de forma alguma. Alice lembra logo de cara uma espécie de Sylvia Plath que se salvou ouvindo Lou Reed.


É tudo mentira, na verdade. Ela me fazia tremer porque seus poemas eram realmente femininos, não exatamente fortes, mas com aquela pungente sinceridade juvenil situada um tom acima da percepção comum, e isso me distanciava automaticamente de sua realidade, em seguida me atraía, nesse movimento de embriaguez que se sente às vezes com alguns poetas, uma sensação de barco bêbado que se sente com Rimbaud, Nerval, Byron, Apollinaire, Lautréamont, essa turminha.


Os poemas de Alice são pequenas centopéias de caramelo. Felizes ou tristes, não são amargos, não são de chumbo. Eu havia lido, relido o livro, e tinha a sensação de que era algo pequenino que eu poderia guardar sem medo de quebrar dentro do coração. Eu queria cuidar daqueles poemas, levá-los para passear e andar de ônibus, apresentá-los timidamente às pessoas como quem diz: “Olha, é realmente uma menina, mas os textos, bom, os textos, enfim, são uns textos do tipo, são textos de menina, mas não quero dizer que, enfim...”.


E assim eu seguia sem saber o que dizer. Era tão boa a sensação pós-leitura, como se algo que ganha vida estivesse em movimento para um centro comum. E então era como se, de alguma forma, eu retomasse uma certa melancolia da estranheza que, normalmente, se perde ainda no final da infância, e talvez até Alice tenha perdido, mas ela se lembra de pequenos fragmentos claramente, como a sensação dos adultos em movimento nos interiores das casas de tias velhas, ou o enorme espaço que tinha o banco de trás do carro, onde podíamos dormir placidamente e onde hoje nos apertamos em corjas embriagadas.


Infância, eu havia tido uma infância. Mas não me lembrava dela direito, ou escolhi me esquecer. A poesia de Alice, para um burro velho, que era como eu me sentia perto dela, chega, no seu auge, a causar constrangimento, pois me revela algo que há muito tempo já havia me cegado. Eu amava aquele lirismo como um condenado a quem se atira um pão doce.


E de repente chega Alice, pede perdão pelo atraso que não houve, senta-se, vira um pouco os olhos, como que à procura de algo. Eu olho para o rosto dela como que procurando nele a menina que volta da aula de natação, ou a jovem estudante e dedicada ao trabalho com seus livros de Emily Dickinson, Elizabeth Bishop e Ana Cristina César. Uma estudante que tem um sorriso de encolher os olhos, e seus olhos tem qualquer coisa de naturalmente encolhida, levemente inclinados para baixo como quem chorou há pouco.


Era para mim um vôo arriscado demais me deixar levar por aquilo. Seria o fim da entrevista, mitificar a figura dos vinte anos de Alice Sant’Anna. Além do que era ridículo, um homem barbado, a essa altura do campeonato, sofrer de tensão porque vai entrevistar uma nova poeta do momento, de apenas vinte anos. Aquilo pateticamente ecoava dentro da minha cabeça: “vinte anos, vinte anos, você não tem mais vinte anos”.


Aquele mergulho na desconhecida ternura de alguém que teve uma infância feliz e fala com clareza sobre ela, que parece ter uma vida promissora, toda aquela aparente convicção sobre o caminhar das coisas, sobre a naturalidade da concretização dos objetivos, aquilo era massacrante para quem já não se sentia mais tão confiante assim. “Vou desmontar essa convicção”, eu dizia a mim mesmo antes de ela chegar. Então ela chega e eu me esqueço de tudo.


Ela senta e eu pergunto se não quer beber alguma coisa. Pedimos o cardápio. Eu falo “Peça o que quiser, é por conta do jornal”, tudo mentira. Ela olha, olha e olha o cardápio. “Nossa, eu não sei o que pedir. Viu como sou confusa?” É como se ela precisasse negar certa tendência a estátua que existe nos primeiros encontros.


Aquilo para mim é um alívio e me faz estalar os dedos debaixo da mesa. Fico feliz porque, de graça, Alice Sant’Anna, esse enfant complexe carioca, me entrega de lambuja uma característica mais profunda e que diz bem mais sobre sua poesia de andar pelas ruas atrás de pequenos farelos de cenas sentimentais apenas ao olhar alheio, simples acontecimentos do dia-a-dia que nos remetem a algo básico: a confusão mental de quem ainda quer tudo e não sabe de nada. Mas quer de um jeito como se fosse um suspiro, do jeito que soa a suave simpatia no sorriso de olhos levemente caídos e, por isso, tão surpreendentes, destoando da presença firme e do jeito elegante e um pouco desajeitado com que se encaixa na cadeira e discute sobre onde devemos posicionar o gravador.


“Olha, a minha voz é terrível”, ela diz, “acho que você pode colocar bem aqui na frente, assim, ó”. Certo seria deixá-la posicionar o gravador para sempre, onde quisesse, sem interferir. Isso seria melhor do que falar qualquer coisa. Mas é preciso estragar tudo quando se é humano.


Dá a impressão de que tudo sai como jogo de amarelinha nos movimentos de Alice. Seu jogo de linguagem é o que gira em torno da cena, o olhar tímido, privilegiado, que vê por debaixo da mesa, faz um risco de giz no chão, sintonia fina de mundo quase imaginário. Onde todos vêem solidão inescapável ela é capaz de ver “dois astronautas indo comprar pão”. Essa é a magia que certamente vai oprimir os olhares engessados, e quem sabe fará o favor de quebrar-lhes o gesso.


A poesia dessa menina de uma timidez que se permite ousar – “Não sou tímida, quem disse que eu sou tímida?” – nos diz que tudo deve adquirir um incrível senso de normalidade. Então, ela me explica apenas com os olhos, levando o copo à boca, qualquer coisa poderá assumir uma grandiosidade própria.


Mas o mais difícil era saber o que dizer a ela. Eu havia anotado quarenta e seis perguntas das mais descabidas num caderno enquanto ela ainda não havia chegado, e estava realmente começando a perder a cabeça quando ela finalmente chegou. Depois que ela sentou eu não sabia mais nem mesmo o que estávamos fazendo ali.


A única pergunta que me vinha à cabeça era algo como: “O que você pensa acerca do Gato de Botas?” A situação começava a ficar realmente difícil, quando ela decidiu pedir “apenas uma água” e eu abandonei o chope e desci um degrau até a vodca nacional. Então duas meninas dessas contratadas por empresas frigoríficas se aproximaram com amostras grátis de pequenos sanduíches de mortadela com pão francês. Aquilo deu uma esfriada nos ânimos e pude até ser engraçadinho.


As mulheres vieram com seus cestos de pães e Alice me perguntou discretamente o que deveríamos fazer. Eu disse “Ora, comer os sanduíches”. Então as mulheres chegaram bem perto e nos ofereceram o pão com mortadela mais novo do mercado. Eu disse “Dê os dois a ela, que ela está faminta”. Todos rimos e Alice me deu um tapa de leve no braço. Aquilo era inesperado, um tapa de leve no braço, e de algum modo serviu para alguma coisa.


Depois começamos a conversar sobre o enfadonho mercado editorial. Alice trabalha como assistente de edição, além de escrever algumas orelhas para os livros da Editora Alfaguara, que têm proliferado como coelhos nas melhores livrarias da cidade. Falamos um pouco sobre o romantismo esmorecido dessa profissão, sobre a faculdade (Alice cursa, hoje, o mesmo curso de Comunicação que eu fiz há seis anos).


Falamos também sobre Haruki Murakami, escritor japonês ocidentalista de quem ela gosta bastante. Eu lembro então de Yukio Mishima, escritor japonês orientalista de quem eu gosto bastante. Ela diz que não conhece, mas com certeza vai procurar, falamos então um pouco sobre os nomes que daríamos aos nossos filhos, e com esse tipo de trivialidade seguimos até o fim do encontro.


Porque essa menina de toque delicado e trejeito de secundarista veio para nos lembrar dos pequenos gestos simples, das coisas que jogamos brutalmente dentro de um armário escuro quando dizemos que isso é amadurecer. A poesia de Alice se disfarça de algodão, mas é mão dada em ciranda, a mão leve que mostra o outro lado à cabeça ensimesmada. Vem sorrateiramente e se instala no vão entre a emoção e a capacidade forjada de se emocionar, adquirida pelo adulto. É cura para espíritos envelhecidos que tocam a mesma nota. Na verdade, erro chamá-la simples. Melhor seria diagnosticá-la minimalismo do enorme. Alice agarra as lascas de pão que ficam pelo caminho de uma cidade-princesinha-caótica. Os poemas bem ali, entre as montanhas, flutuam como sombrinhas de Mary Poppins. E de repente não me sinto mais envergonhado, sou mais um velho salvo.


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