O NATAL É UM QUINTAL >> Carla Dias >>

A menina quer ganhar um pintinho no Natal, ignorando completamente que, quando crianças, minhas irmãs, primas e eu não podíamos ouvir o barulho do berro do homem do megafone, que corríamos com as garrafas nas mãos, das quais, dedicadamente, tomáramos todo guaraná, dias antes.

Trocávamos garrafas vazias por pintinhos... O que poderia ser mais terno? Dar algo vazio e pegar uma vidinha na mão, frágil, mas bem nervosinha, porque eles bicavam mesmo!Depois vinha a fase difícil: dar-lhes nomes e cuidar deles. Corríamos atrás dos pimpolhos, babadores nas mãos, mamadeiras, gritando seus nomes: Piupiu, Zezinho, Cocoricó, Adalberto (?)... Queríamos que os filhotes fossem nossos, mas quê! Eles se escondiam e sabíamos que, numa hora ou outra, eles atravessariam a cerca e debandariam pelo quintal do vizinho.

Aliás, quintal era o que não nos faltava...

O menino pediu um pássaro de Natal, sem se importar se ele teria plumagem fashion ou, como disse um amiguinho certa vez, ele fosse um verdadeiro “vira-latas” com asas. Disse que adoraria ter uma pipa que não precisasse ser empinada; das que era só soltar que ganhava o céu.

Desde muito cedo o menino foi de apreciar liberdade. Aliás, liberdade era o que não nos faltava no quintal lá de casa.

Todo Natal, eu e meus primos e primas pegávamos a fila da felicidade. Ela ficava num centro social do bairro onde morávamos. Era nesse dia que encontrávamos, fora da escola, todos os nossos amiguinhos, e apostávamos quem ficaria com o brinquedo que o outro pegou no ano anterior. E não importava se as rodas dos carrinhos não rodavam ou se as bonecas não mexiam olhos, pés e mãos. Era tão divertido estar ali e saber que, logo mais, nossos brinquedos se misturariam lá na sala de casa. Nós nos misturaríamos, entre brinquedos, cafés e bolos fictícios, feitos por cozinheiros que mal saíram dos cueiros.

Na frente da casa da vó e do vô tinha um pinheiro de verdade, alto pra caramba, que enfeitávamos na época do Natal. Não tinha banquete, muito do que usávamos vinha do que tínhamos no quintal. E não podia faltar cuscuz no menu, tampouco manjar na sobremesa. Nós acreditávamos que ao comer o manjar estávamos bebendo vinho feito adultos... E nos divertíamos com isso até!

Mas um dos momentos mais emocionantes para nós, crianças envolvidas com os mistérios do Natal, era após o almoço, quando nossas mães montavam uma bancada no quintal e colocavam lá toda a louça suja (éramos uma família muito grande). Enquanto lavavam louça, elas cantavam, feito um coral, e sorriam lindamente, como poucas vezes é possível sorrirmos, durante a vida. E sempre, pouco antes de terminarem, chovia... A feição de nossas mães tomando chuva, apenas reforçava nosso desejo de crescermos logo só para podermos tomá-la também.

Depois, tudo se acalmava. Ainda comíamos as sobras da ceia de Natal durante alguns dias, o que para nós era comida especial, porque representava esse momento em que todos os adultos se reuniam, apesar das diferenças; que nós, as crianças, apesar da disputa pela balança do quintal, desamarrávamos a cara e brincávamos de tocar felicidade.

Tomei muita chuva lá no quintal. Ainda hoje, saio do trabalho em dia de chuva e não abro o guarda-chuva. Deixo que La banhe minha alma e, delicadamente, me leve de volta ao Natal desse quintal que é minha infância.


Comentários

Grato pelo emocionante presente de Natal, Carla. Que você receba um lindo quintal em retribuição por suas belas palavras. :)
Carla S.M. disse…
Carla,
eu que cresci em cidade, sem quintal, tomei emprestado o seu e vivi momentos bons!
Carla, obrigada por me fazer viajar ao passado, embalada nas suas sempre tão bem escolhidas palavras. :)
albir disse…
O natal também me lembra quintal, Carla, mas às vezes me esqueço disso. Seu texto me transporta de volta para o melhor endereço que o natal já teve.
Parabéns, sempre, pela poesia de suas palavras.
Carla Dias disse…
Eduardo... Que esse lindo Natal sobre o qual você fala seja o nosso, não somente meu ou seu... Nosso.

Carla... Quintais, causos, piruetas... Empresto o que for para que a palavra ganhe vida no entendimento com as pessoas. Grata, sempre, pela leitura e companhia.

Marisa... Obrigada a você por ter viajado nas asas dessas minhas lembranças. Ainda hoje visitei algumas delas, na feição da minha mãe; nas palavras das minhas irmãs.

Albir... Nossos quintais são importantes, não? Às vezes deixamos de botar pés e emoções neles, mas estão sempre lá: a nossa espera: balanços e sorrisos.

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