AS CASAS DE 2008 >> Eduardo Loureiro Jr.


Há quem não goste de retrospectivas. Mas eu não sou da turma do "pra frente e avante, sempre". Gosto de retrospectivas. Quando a gente olha pra trás de vez em quando, as coisas fazem mais sentido. Mas há que se saber olhar pra trás. Não é olhando de qualquer jeito que se percebe o sentido do que foi vivido.

Na família de minha mãe, nos aniversários redondos, fazemos uma retrospectiva da vida do aniversariante. Esse ano, por exemplo, tivemos dois aniversários de 70 anos. A retrospectiva de Tia Antomária foi feita a partir de um acróstico, forma poética que ela gosta de usar. Para cada letra de seu nome, nós puxávamos uma série de lembranças. Já no aniversário de Tia Ângela, que gosta de fazer crochê, foi a encenação de uma conversa entre uma linha e uma agulha que guiou a lembrança dos momentos mais marcantes de sua vida.

E este 2008? Que forma posso dar às lembranças desse ano em que aconteceu tanta, mas tanta coisa, e muita coisa importante? Pensei em fazer um registro mês a mês, mas tanta coisa aconteceu na virada de um mês para o outro — um grande encontro romântico de janeiro para fevereiro, uma mudança de residência de março para abril, uma despedida de um amigo querido de maio para junho — que descobri a inutilidade da divisão exata do tempo. Optei então por uma retrospectiva astrológica: apresentar o ano de 2008 de acordo com os temas das 12 casas que dividem o mapa astral, os 12 setores da experiência humana.


CASA 1 - O CORPO
Pela primeira vez em minha vida, estou deixando meus cabelos crescerem sem qualquer intenção de cortá-los num futuro próximo. Cabelos têm a ver com liberdade e vitalidade. A melhor explicação para o crescimento de meus cabelos foi dada por mim mesmo, num poema que escrevi — cantando para não esquecer — durante uma viagem de carro de Fortaleza para Teresina:

Meus pensamentos de mar,
não posso mais escondê-los.
Na praia da minha testa,
as ondas dos meus cabelos
rebentam — pedra e espuma —,
ressaca dos meus desejos.



CASA 2 - O DINHEIRO

Durante esse ano, parei de acreditar que o volume de dinheiro é diretamente proporcional à quantidade de trabalho. Para se ganhar mais, não é preciso trabalhar mais, como eu pensava. Hoje, se em algum momento penso que estou precisando de dinheiro e me vem a idéia de que tenho que trabalhar mais para consegui-lo, dispenso o pensamento. Claro que é necessário algum trabalho para que o dinheiro venha, mas não adianta trabalhar mais para ganhar mais. Não sei exatamente como acontece, mas o fato é que, pensando assim, tive o melhor ano financeiro de minha vida até aqui: não deixei de fazer nada por não ter dinheiro. Descobri que o dinheiro é só uma das materializações do Valor, e que se valorizarmos mais a nós mesmos e aos outros, o dinheiro aparece com facilidade.


CASA 3 - OS ESCRITOS

Eu sempre achava muito estranho quando um escritor dizia que ouvia seus personagens falando. Aquilo me parecia absurdo, impossível, coisa de louco, de maluco. Personagens não existiam, eram inventados. Não poderia haver nada que um personagem dissesse que não fosse a voz do próprio escritor. Bom, isso foi até eu começar a ouvir meus próprios personagens falando durante este ano. Hoje, meu processo de escrita é muito mais um processo de audição do que qualquer outra coisa. Eu basicamente transcrevo o que ouço e descrevo o que vejo. E quando não faço isso, como agora, fazendo esta crônica retrospectiva, tenho uma certa sensação de que não estou escrevendo verdadeiramente. Agora, para mim, a escrita real não é mais a arte da escrita propriamente dita, mas a arte de escutar. E, além de minha crônica semanal, tenho sentado, ouvido e escrito pelo menos uma nova história infantil por semana.


CASA 4 - O LAR

Sempre achei que passaria toda a minha vida em Fortaleza. Tanto que fiz mestrado e doutorado por lá. Não havia nada, em lugar nenhum, que me prometesse alguma coisa que eu não pudesse encontrar em Fortaleza. Quando eu era criança, certa vez minha mãe arrumou uma mala para que eu e minha irmã fôssemos passar uma semana de férias no interior do Ceará, na casa de uma tia. Na hora de entrar no ônibus, falei para minha mãe que não iria. Minha irmã e minhas roupas foram, eu fiquei. Quando, por motivo de fuga afetiva, me mudei para Teresina em 2005, para mim só havia duas possibilidades: permanecer para sempre em Teresina ou voltar para Fortaleza definitivamente. Em abril deste ano, acabei vindo para Brasília. Após uma semana, eu já me sentia familiarizado com a cidade. E tive uma sensação estranha, inédita, de que eu poderia morar e me sentir bem, confortável, em qualquer lugar do mundo — Alasca incluído.


CASA 5 - A CRIAÇÃO

Não, 2008 ainda não foi o ano em que tive filhos. Se eu tivesse que lamentar esse ano por algum motivo, seria esse. Mas eu escrevi tanto — e histórias são como filhos — que me valeu de consolo. E eu tenho a Julia, que é uma linda menina como se fosse sobrinha, linda sobrinha como se fosse filha. E eu tenho o Crônica do Dia, que também é uma espécie de filho e que, assim como a Julia, completou 10 anos em 2008. E também coloquei no mundo — por meio de uma entrevista televisiva e de um artigo numa revista especializada — a Astrodramaturgia, que talvez seja a forma como serei lembrado daqui algumas décadas: como o Pai da Astrodramaturgia.


CASA 6 - O COTIDIANO

Quando eu era criança, mesmo sendo um excelente aluno, acalentava a fantasia de que os dias deveriam ser diferentes, de que a distribuição das atividades durante a semana deveria ser invertida: por que não irmos à escola apenas dois dias e passar cinco dias vivendo um grande "fim de semana"? Comecei o ano de 2008 assim e, quando vim para Brasília para trabalhar no Ministério da Cultura, tive meu tempo roubado. Foi o suficiente para um pedido de demissão. Agora os dias voltaram a ser meus, não têm mais hora marcada. Posso fazer o que quiser, no dia em que quiser, na hora em que quiser. 2008 talvez seja lembrado como o último ano em que tive de dar expediente.


CASA 7 - OS RELACIONAMENTOS

Eu adoraria dizer para vocês que, em 2008, encontrei a mulher da minha vida, que estamos namorando, que noivaremos e casaremos em breve. Mas ainda não foi dessa vez. Os relacionamentos têm sido generosos comigo, mesmo os que não dão certo têm dado certo. Tenho aprendido o que há para aprender. E tenho guardado o bem-querer pelas pessoas com que me relaciono. Em alguns casos, quando a outra pessoa também aprendeu o que tinha de aprender e também guardou o bem-querer, temos ficado amigos. E é maravilhoso ser amigo de alguém que nos é tão íntimo, com quem partilhamos um dia a nudez do corpo e continuamos a compartilhar a nudez da alma. Então só posso ser grato às três mulheres absolutamente incríveis — uma delas, maravilhosa — que me deram a honra de conhecê-las este ano.


CASA 8 - O SEXO

Em relação ao sexo, eu sempre me senti meio mulher: para mim, sexo tem que ter sentimento, afeto. Foram raríssimas as vezes em que me envolvi em algum tipo de sexo casual, e nenhuma delas aconteceu em 2008. Este ano, algumas vezes, tive até que negar o sexo, mesmo quando ele tinha afeto. Negar a alguém o prazer sexual, principalmente a alguém querido, não é fácil, mas foi necessário algumas vezes em 2008. Das vezes em que me permiti, e graças a Deus foram muitas esse ano — embora talvez menos do que minhas parceiras desejassem —, tive o prazer, literalmente, de experimentar sensações inéditas ou há muito adormecidas. De todo modo, contrariando a crença de que os escorpianos são uma espécie de máquina sexual, devo dizer, e continuar dizendo, que, para mim, mesmo quando o sexo é bom, como foi esse ano, melhor ainda é o aconchego, o abraço, o amolego, o cochilo e o acordar de cara com a pessoa amada.


CASA 9 - AS VIAGENS

Quem diria que eu, o menino que embarcava bagagens mas não se embarcava, viraria um viajante e que até começaria a gostar disso? Viajei muito esse ano: Acre, Bahia, Pernambuco, São Paulo; duas vezes para o Rio de Janeiro; e mais trajetos do que pude contar entre o Distrito Federal, Ceará e Piauí. Viajar ainda me dá uma certa ansiedade antes e uma absoluta ressaca depois: preciso de alguns dias para voltar ao normal, e alguma vezes nem consigo voltar ao normal. Mas o durante tem sido sem sustos: de surpresas, de alegrias. Tanto que está decidido e planejado, só falta comprar a passagem: ano que vem irei à Itália e concretizarei a profecia de um antigo poema meu:

Não sou Pacífico.
Sou Atlântico,
Mar Tenebroso.
Quando atravessar,
ganho um mundo novo.



CASA 10 - A VOCAÇÃO

Já pensei em ser muita coisa na minha vida. O mais antigo desejo vocacional de que me lembro é ser vendedor de pipoca. E confesso de que ainda não desisti inteiramente de ser dono de uma banca de revistas: uma banca enorme, com espaço para armar uma rede dentro, e com um sistema self-service, em que os próprios clientes pegam a revista e depositam o pagamento em uma caixa registradora; tudo para que eu fique só deitado, lendo. Mas em 2008 ocorreu-me que estou vocacionado para três atividades: o ensino, a escrita e a astrologia. Este ano, quando me perguntaram o que eu fazia, eu que sempre tive dificuldade em preencher minha profissão em formulários, pela primeira vez respondi com convicção: sou professor, escritor e astrólogo. Foi nesse ano que me descobri completamente à vontade em sala de aula, mesmo diante de um excessivo número de alunos. Foi esse ano em que lancei dois novos livros, e escrevi duas dezenas de outros. Foi esse ano em que perdi a vergonha de oferecer meus serviços astrológicos. O ano em que atendi à voz da vocação.


CASA 11 - OS GRUPOS

Não há nada tão paradoxal em minha vida quanto isso: sou uma pessoa de temperamento retraído, assemelhando-me muitas vezes a um ermitão (nos últimos três dias, só mantive conversação com duas pessoas), e, no entanto, gosto bastante de participar de grupos e eles têm um papel importantíssimo em minha vida. Ainda na graduação, demos início a um grupo chamado Os internos do pátiO, que ano que vem completará 20 anos, e que é formado por poetas e compositores. E já são 10 anos de Crônica do Dia, esse grupo de escritores que tenho a honra de articular. 2008 me deu um novo e importante grupo de presente: a Casa de Autores. Somos 22 escritores que moramos em Brasília e que, com o auxílio de uma encantadora dona de uma distribuidora de livros, estamos abrindo e criando espaço no mercado editorial.


CASA 12 - A ESPIRITUALIDADE

Tudo de que falei, tudo que aconteceu em 2008 não faria sentido para mim se não fosse pela espiritualidade. Quanto mais o tempo passa, mais fica claro para mim que o sentido dessas coisas todas que nos acontecem não se resume a essa vida neste querido planeta. Somos espíritos, nos desenvolvendo na direção da luz, da paz e do amor. Considero-me privilegiado por dispor de dois instrumentos valiosos de desenvolvimento espiritual: o Pathwork e a União do Vegetal. Neste ano, confirmei para mim mesmo a importância desse caminho. E ainda recebi o presente de participar de algumas sessões de Constelação Familiar, uma forma de terapia breve altamente impactante e eficaz. Pela Constelação Familiar, parei de me culpar por meus retiros de ermitão, e me permiti vivenciar papéis que também fazem parte de mim ao auxiliar na Constelação Familiar de outras pessoas. Sou grato por tudo isso ao mundo real que nos parece invisível.

*

Eu lhes falei que era muita coisa. E mesmo tendo apresentado essas tantas casas de 2008, fica a sensação de que ainda não disse tudo. Por exemplo, não falei de música, dos dois estúdios em que gravei, do CD de composições próprias que preparei para meu sobrinho, das apresentações na Bienal do Livro de São Paulo e na Feira do Livro do Distrito Federal, das muitas músicas que fiz, dos meus parceiros, das minhas musas... Ah, quanta coisa boa! Graças a 2008, que me deu tanto.

E que seja bem-vindo 2009. O ano que tem a delicada missão de dar continuidade a tanta coisa boa que começou em 2008. Que você, meu desde já querido ano novo, tenha bastante disposição e paciência para cumprir sua missão.




Comentários

Eduardo, que coisa boa ler uma retrospectiva cheia de momentos bons e repleta de esperanças e energias. E, claro, que sendo ela de uma pessoa querida, fico ainda mais feliz! Que seu 2009 possa vir ainda mais carregado de reencontros! :)
Juliêta Barbosa disse…
Eduardo,
Você disse que não teve filhos! E nós o que somos?
... Somos filhos do encanto que suas palavras proporcionam e em sendo assim, sua benção de palavras mágicas para que o nosso ano seja de luz.Feliz Ano Novo!
Carla Dias disse…
Eduardo... Ufa!
Quantas realizações fantásticas e disposição para alcançar o melhor sem medo ou culpa.
Adorei sua retrospectiva... E ficarei daqui, torcendo para que 2009 lhe receba muito bem.
Jay disse…
Uau!
Tinha muito tempo que não passava por aqui e nem sei mesmo porque...esqueci de como esses textos são bons...fazem um bem..
bjinhos té mais
feliz 2000 inove.
Grato, Marisa. Desde que li Pollyanna a minha sensação é de que a vida é feita só de momentos bons, mesmo que a gente se sinta tentado a achá-los ruins de vez em quando. :)

Pra você ver, Juliêta, como esse ano de 2008 foi mesmo bom pra mim: ele ainda tinha guardada na manga, em seu finalzinho, essas suas palavras tão gentis. :)

Carla, ainda não consegui dizer o "ufa!". Continuo lembrando de coisas importantes que aconteceram e que esqueci de registrar: como a experiência maravilhosa de escrever diálogos com a Ana e com você. :)

Você voltou na hora certa, Jessica: hora de festa. :) Apareça sempre que quiser.
Anônimo disse…
Oi Eduardo,
Adorei esse texto. Adorei essa sua escrita mais pessoal, falando de você mesmo de forma direta, nos brindando com as suas conquistas e descobertas.
E, em 2008 uma das coisas que adorei mais - entre todas - foi fazer parte desse grupo, desse espaço tão generoso e acolhedor...
beijos
Ana
PS. Em um dos meus sonhos mais antigos, também está ter uma banca de jornais e revistas. Vou aprimorar o meu sonho com o seu, e incluir esse sistema moderno de self-service + rede.
Anônimo disse…
Junoca,
Como diz o ditado: A gente colhe o que planta :o) Que você continue colhendo e plantando e colhendo... todas as maravilhas citadas nas suas "casas".
Que delícia de crônica!
Feliz 2009!
Tia Monca
Ana, seu comentário me fez lembrar dos tempos em que minha escrita era mais pessoal, falando de mim mesmo de maneira mais direta. Será que devo voltar a praticar isso? :) Quanto à banca de revistas, de repente poderíamos nos revezar em turnos: eu não pretendo passar o dia todo dentro da banca. :)

Tia Monca coisas de Pathwork... :) E vamos aproveitar esse restinho de 2008.
Carla S.M. disse…
Acho que me identifiquei com a casa 12 :)
Escolheu a casa boa, cArLa. Nela estão as sementes de tudo que frutifica nas demais casas. :)
Anônimo disse…
Eduardo, olha eu aqui de novo. Esse espaço é especial, os textos são ótimos. Adorei sua retrospectiva e os planos para 2009da Ana. Até me deu vontade de escrever a respeito de minhas casas e dos meus planos tbm.
Feliz ano novo para vc!
Grato, Luciane! Que bom que veio novamente. Se deu vontade de escrever casas e planos, escreva. :) Que 2009 já esteja sendo feliz pra você.
Anônimo disse…
Rapaz, gostei da retrospectiva... :)

Se eu tivesse realizado 10% do que você fez, eu tava contente.

Eu quero ouvir essas músicas suas. Como faço?

Passei em duas seleções para vaga temporárias no governo, aí em Brasília e outra em João Pessoa. Estou esperando a convocação e, enquanto isso, pensando pra onde vou. Se eu decidir ir pra aí, pode contar comigo pra ser seu sócio na primeira banca de revista self-service do Brasil! :)

Um abraço!
Fábio rapaz! Mas tu tá muito bom de destino: Brasília ou João Pessoa? Que maravilha! Melhor que isso, só se fosse Fortaleza ou Teresina. :) E esse negócio de banca self-service com direito a rede vai ter mais dono que cliente. :) Eu te mando umas músicas por e-mail. Valeu!
Anônimo disse…
gosto muito de pensar sobre tudo ,especialmente sobre o ontem,mesmo sabendo q a maioria das vezes ñ posso corrigir .parabéns por seu 2008 e seja ainda melhor 2009.lindo ,lndo como usa as palavras .
Grato, Marcela. Vamos fazer esse 2009 bem bom. :)

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