SONIA >> Ana Raja


Estou de férias desde a semana passada. Não deixei a crônica pronta e não gosto de repetir os textos já publicados. Passei esses dias pensando sobre o que escrever, mas as cidades, os passeios, as comidas, as flores, o silêncio, nada sussurrou um tema no meu ouvido. 

Até sexta passada.

Por volta das 9h da manhã, eu e meu marido estávamos a caminho de um passeio, e encontramos, em uma rua de paralelepípedo, um carro parado com uma das rodas traseiras no meio-fio. Passamos devagar pelo veículo e vi que  uma mulher com idade bem avançada era a motorista.  Ela estava ali, sentada no posto de comando daquela máquina, aparentemente rebelde, pois não respondia as suas ordens. 

Estacionamos um pouco mais a frente, nos aproximamos e perguntamos se estava tudo bem. Um pouco assustada com a nossa presença, disse que o carro não pegava e que ela não sabia o que fazer.

Oferecemos ajuda, a fim de tentarmos entender o que acontecia com o veículo. Ela demorou para responder, mas por não compreender o que dizíamos. Tive que aumentar o tom de voz e escolher outras palavras.

O carro não dava partida. Anunciamos a possível causa do problema: bateria.

— Qual é o nome da senhora?

— O quê?

— Como a senhora se chama?

— Sonia.

— A senhora está com o celular?

— Não, esqueci em casa.

— Tem filhos? 

— Tenho.

— Lembra do telefone deles?

— Não lembro.

— Qual é o endereço da senhora?

— Eu moro longe.

— E o nome da rua?

¬— É longe.

Aos oitenta e sete anos, ela trajava um pijama de cor discreta, e para se proteger do vento frio, usava uma blusa de lã cinza.

— Sonia, entre no nosso carro. Vamos ajudar a senhora.

Sem medo, entrou e nos acompanhou tranquilamente. Disse que a filha ficaria brava com ela, porque a avisou para não pegar o carro, mas não conseguiu resistir. Contou que esteve doente por várias semanas e havia voltado para casa recentemente. Então, pegou o carro para dar uma volta. Precisava respirar um pouco.

Duas ruas do ocorrido com Sonia, avistamos uma batida entre dois carros. Havia viaturas no local e os policiais orientavam quem passava por lá, para desafogar o trânsito. 

Saímos do carro e fomos até os policiais para explicar o que havia acontecido. Em menos de cinco minutos, já sabíamos de quase toda história de vida dela.

Puxaram a ficha de Sonia e então veio a informação principal: um telefone de contato em uma ficha do hospital. A policial fez a ligação e, do outro lado da linha, alguém respondeu: é a minha mãe.

Esperamos a chegada da filha e seguimos o nosso caminho. Ganhei duas lembranças de Sonia, feitas por ela mesma: um abraço e um beijo emocionado. Retribuí o carinho. Enxuguei as lágrimas dela e ela as minhas.

Envelhecer não é tarefa fácil.

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As dores delas, primeiro livro de Ana Raja, está a venda no www.editoraurutau.com.

anaraja.com.br

Comentários

Aprendi com Ana a bondade, com Sonia o sabor da liberdade. Chorei com
Ambas. Lindo Demais esse texto-vida.
Ana Raja disse…
Obrigada, minha amiga querida!
Anônimo disse…
Por isso que alguém já disse: se você quer ser um bom escritor, o primeiro passo é viver.
Soll Toledo disse…
Sempre atenta a todos os detalhes. Vc consegue tirar lindas palavras de momentos, que para muitos são simples e comuns! Vc é uma grande artista!! Amo!!
Albir disse…
Que beleza, Ana! Muito bem retratado.

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