RELAÇÃO ABUSIVA >> ANDRÉ FERRER

Charles bateu no tampo da mesa, queria mais café. Com a mão desocupada, ele acenou para Ana.

— Ande. Você parece uma tartaruga.

— Estou indo — disse a mulher pressionada.

Ana deixou a xícara de café na frente de Charles e voltou para trás do balcão. Ele bebeu com a mão esquerda, então a xícara entornou um pouco de creme na mesa. Charles pôs a xícara de lado, passou o dedo na fórmica e lambeu.

— Delícia — disse ele.

Ana observou a pia cheia de louças, algo de que não gostava nem um pouco. Nem nos dias mais terríveis, ela deixava de colocar tudo em ordem. Seu instinto de mulher falava mais alto mesmo numa situação como aquela.

No dia a dia, limpava, guardava e servia, por isso mal se conteve, explodiu num movimento automático, abriu os braços, curvou-se um pouco e voltou para o mesmo lugar. Tudo porque tinha o hábito da organização.

À distância, Charles viu o espasmo que Ana sofreu. Deixou a xícara na mesa, inclinou o corpo na cadeira, levantou o queixo pontudo.

— Oh, tartaruga — disse ele.

— Quero limpar isto aqui.

— Pode ser.

O homem já tinha terminado o café. Levantou-se e foi até uma das janelas enquanto a mulher trabalhava.

Ana lavou as xícaras e arrumou-as ao lado da máquina de café. Depois, voltou-se para Charles, que devolveu o olhar. Parecia invencível. Renovado por causa do café. Quem sabe até satisfeito com o que tinha visto no pátio.

Ana escutou algo e prestou atenção. Era uma voz conhecida, o mesmo jeito de falar do seu colega de trabalho Breno.

Ora!, pensou. Se, pelo menos, ele estivesse aqui. Breno é inteligente, sabe conversar e, quando necessário, é corajoso, muito corajoso, bem diferente das pessoas inúteis e covardes que estão aqui.

O homem completou o seu giro e olhou naquela direção. Era obstinado. Tão poderoso, que fazia Ana sentir-se coberta por uma sombra.

— Tem medo? — ele disse.

— Não sei. Há motivo para ter medo?

— Nenhum. Desde que colabore.

— Colaborar? O que ganho com isso?

— Um passeio, logo mais, à noite.

— Besteira.

O homem mostrou-se de frente, ainda mais ameaçador. Levantou as duas mãos, que estavam ocupadas.

— Por enquanto, você é a minha barista particular.

Ela riu.

— Não ria. Tomarei muitos cafés ainda. Estou virado.

Enquanto isso, os outros ocupavam as pequenas mesas de fórmica e mais pareciam estátuas. Eram os fregueses do café e jamais imaginaram chegar àquele ponto, as mãos à mostra, o pescoço rígido, a boca muda, exatamente como foram instruídos a ficar. Estavam apavorados de formas diferentes, mas tinham o mesmo problema: Charles.

— Aqui no meio — ele disse.

Charles teve uma ideia. O pessoal lá de fora não contava com aquilo que ele concebeu. Logo, pegaremos a estrada, pensou. Estaremos longe, querida, antes de anoitecer... Se bem que, à noite, é melhor para nós. A escuridão sempre ajuda.

Àquela altura, já estavam no lugar indicado. Os três operários, João e os dois casais de desconhecidos formavam um semicírculo conforme Charles ordenara. De todos eles, João era o habitué e, com os seus caprichos, incomodava bastante os convivas, Ana e Breno. Naquela tarde, seus tiques nervosos fizeram com que Charles olhasse feio para ele algumas vezes.

De repente, João teve uma crise de euforia porque uma sirene tocou no estacionamento, o sinal sonoro de um megafone. Era a terceira vez que acontecia, mas João sabia que os policiais queriam conversar de novo e, quem sabe, libertariam todos. Charles abriu os braços no meio do salão, sinalizou para que ficassem calados e apontou as duas pistolas para João, que parou de rir. Charles foi até a janela e afastou a cortina. Ouvi-se uma voz metálica no estacionamento.

— Escute: já decidiu o que vai fazer? Temos um atirador.

Charles tomou um susto. Pela primeira vez, ele demonstrou fraqueza. Afastou-se da janela aos saltos, foi até o balcão, disse: — Já pensei nisso. Penso em tudo. Podem apostar.

A luz filtrada batia no rosto dele e intensificava a frieza. Lá dentro, estava mais escuro porque o Sol já descera bastante, várias cortinas estavam fechadas, o pano azul pintava o ar do café.

Charles se empertigou, apoiou um dos cotovelos no balcão e escolheu uma pessoa, João, o homem dos tiques. Ana viu aquilo e sentiu um prazer secreto. João era chato e arrogante. Costumava ir ao café de manhã e à tarde. Bebia Fanta enquanto a fumaça do seu cigarro invadia o espaço alheio e sempre pedia um sanduíche de pão de forma, tomate, alface e patê de sardinha. João era cheio de manias. Trabalhava como gerente de uma das fábricas próximas e tinha o hábito de gritar com as pessoas caso fosse contrariado.

— Ei! Essas mesas, quero todas encostadas nas janelas... Ande. Estou com pressa.

Charles apontava uma arma para ele e a outra para o grupo de fregueses. Enquanto obervavam o trabalho de João, eles se encolhiam e, talvez, sentissem inveja de Ana, que estava fora da mira. Era tão inofensiva para o homem, que ele nem se importava. Charles pensava em outras coisas, agora, no grupo de reféns e no estacionamento, lá fora, coalhado de policiais.

— Pronto — disse o homem dos tiques.

— Então, vocês todos vão para lá. Formem uma parede ao longo das mesas e das janelas. Quero tudo fechado. Se os policiais atirarem, vocês saberão primeiro.

Ana estalou os dedos. Tinha uma dúvida. Disse:

— Eu também?

Charles balançou a cabeça.

— Não. Você fica aí.

Ela sabia o que Charles pretendia. Breno, seu companheiro de trabalho, já sabia muito antes do que Ana. Sabia, mas nunca tratava o caso com objetividade. Breno só rodeava o assunto e adiava uma conversa franca. Talvez, no pátio, naquele instante, ele lamentasse por ter feito tão pouco.

Ana prestou atenção. No silêncio que se fez, podia-se ouvir o burburinho da gente no estacionamento. Por um segundo, Ana achou que tinha escutado a voz do seu colega de trabalho. Quem sabe? Imaginou-o, à beira do asfalto, rodeado de pessoas, clientes do posto de combustível, frentistas e policiais, um homem revoltado e que parecia arrependido, mas não nervoso.

Breno se controlava. Ele sabia disfarçar o nervosismo quando queria dizer algo que não saía de jeito nenhum. Ensaiava, fingia, fugia. Fora assim que protelara toda a história e deixara que o caso alcançasse aquele ponto. Quando chegava perto, desistia e encontrava algo diferente com o que ralhar.

— Você fica.

— Vou te ajudar.

— Não. Você fica.

Breno também falava assim para protegê-la. Queria Ana longe das mesas quando o ex-marido dela aparecia no café. Um indício recorrente, algo que a mulher negligenciava e só compreenderia naquela tarde. Antes disso, ela nem imaginava o que Breno tentava dizer por detrás daquele seu comportamento estranho. Vivia tranquila. Não desconfiava de que um confronto se desenhava. Breno sugeria, segurava o ódio, descontava em outra coisa.

Fileira pronta, Charles inspecionou os reféns e organizou o seu escudo. Depois, olhou de longe para a mulher. Ana devolveu o olhar.

Idiota!, pensou. Eu ignorei tudo isso, fui estúpida e a ideia de que Breno seria útil aqui também é estúpida. Ele tentaria bancar o herói, o que seria péssimo. Na verdade, correríamos um risco fatal... Felizmente, ele saíu e não voltou mais.

Naquele momento, a sirene do megafone tocou.

— Aqui é o cabo Sílvio.

— Todo mundo quieto.

Charles estava no comando e tinha uma Glock em cada mão. Ai de quem começasse um motim. Atrás das janelas, agora, ele tinha um bloqueio. Aproximou-se da fileira, quebrou a vidraça, tratou de ficar grudado num dos operários. Quando estava pronto, gritou com os policiais. Aquilo nunca seria um acordo.

— Saiam daí. Ou vocês saem ou vou dar uns tiros aqui. Primeiro, na parede... Depois, pegarei um desses merdinhas.

O cabo levantou o volume do megafone.

— Fique calmo. Precisamos conversar.

— Vocês vão sair ou não?

— Fique calmo. Não existe atirador.

— Então, foi um blefe.

— Chame do que quiser.

A polícia estava ao redor das bombas de combustível. Dava para ver que eles tinham um plano porque o número de viaturas diminuíra. Os policiais tinham afastado os clientes e os frentistas, que estavam na beira da estrada em segurança. No asfalto, o trânsito fora impedido.

Charles andou até o meio do salão e sinalizou para que Ana saísse detrás do balcão, ele atirou na parede e nas prateleiras. Um tiro também atingiu a caixa registradora.

Depois do barulho, o cabo acionou a sirene e voltou a falar: — Tudo bem. Vamos dar uma pausa para planejar e decidir como sairemos daqui. Há vários problemas que precisamos resolver antes de saírmos. Por exemplo: a estrada está bloqueada por uma longa fila de veículos. Fique calmo. Aguarde alguns minutos.

Por muito pouco, nem Charlie nem os outros conseguiram escutar o que o cabo comunicava. O final da mensagem, principalmente, ficou prejudicada por causa dos gritos.

— Pirou.

— O que houve com ele?

— Faço ele parar.

Depois dos tiros, João se encolheu na cadeira e começou a chorar. Então, o parecer dos policiais agravou o estado do gerente, que chorava, gesticulava e se arrastava no chão, crise que durou meio minuto e que Charles tratou de encerrar com uma forte coronhada. João caíu no chão desacordado.

— Não faça isso — disse Ana.

— Cale-se — fez Charles. — Volte para o seu lugar. O resto fica onde está.

A mulher obedeceu e, mais uma vez, pensou ter ouvido a voz de Breno lá fora. Com certeza, o rapaz estava no pátio, entre os curiosos, arrependido por não ter feito mais.

Ana sabia que ele teria feito mais, contudo o ex-marido tinha chegado primeiro. Breno jamais a deixaria na mão, era um bom sujeito, por isso estava em algum lugar lá fora bastante arrependido.

Era uma pena. Ele não merecia o arrependimento. Fazia muito pelas pessoas e, para a família, ele era um capacho de tão bom. Nunca deixava um parente seu na mão e foi isso que o fez sair naquele dia.

Logo depois do almoço, finalmente decidira dedetizar a despensa. Esvaziou o lugar, conferiu as validades, varreu o chão, passou pano. Então, quando já estava pronto para começar, a sua irmã caçula precisou de um favor e telefonou. Por isso, Breno foi à cidade e não voltou. Saíu tão apressado, que mal avisou aonde ia e até deixou a lata de raticida num lugar inadequado: sobre a prateleira que ficava acima da bancada.

Naquele momento, algo estalou dentro de Ana e ela viu a oportunidade. Discretamente, voltou-se para trás e confirmou: o veneno estava lá. Charles ocupava-se de João, que estava no chão com a cabeça aberta. Batia no rosto do gerente, olhava para ele.

— Você é tão esquisito homenzinho.

Ana tomou coragem.

— Charles.

— O que foi mulher?

— Você quer beber mais um café enquanto espera?

Charles bateu, de leve, o cano da Glock na testa de João, e sorriu. Ele conhecia o tom que Ana usara. Sabia como era importante. Um grande trabalho fora necessário para que ele voltasse a ter aquilo.

Atrás do balcão, Ana admitiu: precisava ser ligeira e forçou a lembrança do rápido instante em que espiara a prateleira sobre a bancada. Sim, a lata de raticida não só estava tombada como também tinha perdido a tampa. Um dos tiros atingira as tábuas, o impacto tombara a lata, o granulado se espalhara sobre os utensílios do espresso com leite. Havia raticida na bancada, sobre as xícaras recém-lavadas, dentro de uma caneca de alumínio.

IMAGEM: ChatGPT

Do outro lado do salão, o homem da Glock cuidava de João e, ao mesmo tempo, espiava o exterior. O gerente de fábrica acordou, ele coçava o nariz de um modo frenético enquanto os policiais conversavam em roda. Charles tinha dado o seu recado e, aparentemente, estava em boa vantagem. Os fardados são ladinos, pensou. Com certeza, estão tramando a contramedida.

Charles mordeu os lábios. Apertou as pistolas com as mãos.

— Mulher.

Agora, ele se dirigia ao balcão. Os braços um pouco dobrados, o corpo relaxado, as pernas gingavam como se estivessem num passeio e não numa lanchonete sitiada. Quando se aproximou, ele repetiu o chamado e fez um pedido.

— Mulher. Faça outro café.

— Faço.

Charles apoiou as costas no balcão, voltado para João e os fregueses enfileirados. Tinha que vigiar.

Por sorte, nenhuma bala chegara à máquina de espresso. Ana tirou o café. Depois, ela pegou a caneca suja e vaporizou o leite, que ganhou a consistência de que o homem gostava. O creme ficou mais escuro do que de costume.

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