ZERO ZERO OITO >> JANDER MINESSO

 

Nasci em São Caetano do Sul, uma cidadezinha encravada no sovaco de São Paulo. Durante os primeiros catorze anos de vida, vivi bem ali dentro. Mas a aurora da adolescência trouxe a reboque uma obsessão por música e um desejo por novos lugares. Talvez o marco zero desses anseios tenha sido um convite feito pelo meu amigo Diego:

– Vamos na Galeria do Rock sábado?

Pelos cânones do estilos, nunca fomos roqueiros. Tenho horror a Led Zeppelin até hoje. Mas à época, estava começando minha coleção de CDs do The Cure, então topei a aventura. Foi o começo de uma paixão pelo Centro de São Paulo.

As jornadas para a Galeria se repetiam quase todo mês. Para começar, pegávamos o ônibus zero zero oito, vulgo São Paulo: Parque D. Pedro II, que seguia direto pela Avenida do Estado. O ponto alto da viagem era ver o prédio do Banespa aparecendo por trás dos outros edifícios enquanto serpenteávamos por aquela tripa de asfalto que fedia a ovo estragado. Perto do escritório da Gurgel, havia também uma série de outdoors bancados por algum cristão rico. Frases como “A televisão é a imagem da besta” e “Jesus está voltando” estampam cartazes em letras garrafais. Tinha algo de cyberpunk que tornava aquele cenário fascinante.

Depois do ônibus, havia a escalada até a Galeria, que também era cheia de atrações. Subíamos a General Carneiro em meio àquela mistura de comércio, art déco e pichações. Chegando no alto, seguíamos pela Rua Direita até o Viaduto do Chá, depois contornávamos o Theatro Municipal e pronto: lá estava a Galeria do Rock, com tudo aquilo que um moleque tarado em música poderia querer.

Se minha veia roqueira era pouco ortodoxa, a do Diego era pior. O cara tinha ojeriza a qualquer guitarra distorcida. Em compensação, não podia ouvir um sintetizador que já ficava com os olhos marejados. A gente se divertia garimpando discos difíceis de achar, gastando nosso dinheiro suado para comprar algum álbum obscuro de uma banda esquisita ou, então, criando coragem para comer um bolovo de validade questionável. Às vezes, o dinheiro mal dava para o ônibus da volta, então visitávamos algumas lojas só para ouvir um som. Esqueci o nome do cara, mas tinha um barbudo que estava sempre de boné e tocava qualquer coisa que a gente pedisse. O incenso amadeirado combinava bem com a maconha que ele queimava dentro da loja. Gente boa demais.

Continuei repetindo o passeio na juventude. Era comum matar aula na faculdade e passar o dia nos arredores do Anhangabaú. Foi perambulando pela Conselheiro Crispiniano que comecei a me interessar por fotografia. Outra rua clássica era a Santa Ifigênia, paraíso das bugigangas e contrabandos. Nela, o primo do vizinho de um amigo meu gastou seu primeiro salário para comprar um PlayStation 2 destravado e cinco jogos. Não pega bem fomentar esse tipo de ato ilícito numa crônica mas, em defesa da pessoa, eram anos loucos. Não devemos julgar as atitudes de ontem com as lentes do presente.

O Centro era quase mítico. Portanto, imaginem minha alegria quando, décadas depois, me mudei para uma travessa da Brigadeiro Luís Antônio — a mesma rua que os atletas da São Silvestre sobem se esgualepando no último dia do ano. Atleta que nunca fui, preferia descer a Brigadeiro, seguir rumo ao Largo São Francisco e continuar até uma doceria portuguesa chamada Casa Mathilde. Chegando lá, eu tomava um café, comia um palmier e voltava. De metrô.

A pandemia acabou mudando muita coisa, inclusive essa relação com o Centro. Comecei a ouvir histórias assustadoras de abandono e violência. Nos últimos anos, só fui até lá uma vez, para um show da Lana del Rey no Anhangabaú. Não dá para fazer um show naquele lugar. Mas, para além da questão logística, fiquei impressionado com a quantidade de pessoas andando pelas ruas com o olhar vidrado, cuspindo palavras pouco inteligíveis e mantidas em lugares mais ou menos específicos por um pequeno efetivo policial que, talvez, preferisse estar em outro lugar. Cagão que sou, nunca mais voltei. Outro dia, até mencionei para o Diego a vontade de tomar um café e comer um doce na Casa Mathilde. Ele me disse que aquela loja fechou, mas agora tem uma nova unidade em Moema.

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Imagem: arquivo pessoal

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