O QUATRO DOS INFERNOS >> Albir José Inácio da Silva

 

A professora apagou já duas vezes a linha de quatros no meu caderno. Agora eu estava de volta à sua mesa, esperando que ela desse um C na maldita linha, como fizera nas outras. Mas ele não veio ainda dessa vez.

 

Ela olhou o caderno e pegou a borracha. Tive vontade de chorar. Estava destruído. O quatro era o mais fácil, uma cadeira, por que eu não conseguia?

 

O um era um graveto, associava eu. O dois, uma minhoca se contorcendo, porque se estivesse esticada não servia pra dois. O três, um bumbum de neném. Por um tempo me perguntei por que de neném, poderia ser de qualquer um, o desenho é o mesmo para todo mundo. Mas agora sei que, de neném, era o único bumbum que eu tinha visto. E chegamos ao quatro, que eu identifiquei fácil, uma cadeira.

 

Feita a associação, nem me preocupei mais em olhar o modelo de quatro no início da linha, em azul, com a letra caprichada da Tia Vera. E foi o meu erro. Fui repetindo a cadeira até o fim da linha, com uma certeza leda e cega.

 

Lembrei-me dos exemplos de meninos que não estudavam e ficariam o resto da vida capinando mato ou carregando peso. Vi a cara de alguns conhecidos e parentes que, não servindo para estudar, viraram exemplos do que eu não deveria ser.

 

Lembrei-me da viagem que durou um dia inteiro no trem de aço, com nossas malas, caixas e trouxas. Tudo em busca do Rio de Janeiro e suas escolas. Eu já estava passando da idade, sete anos.

 

E agora tudo perdido. Eu não servia para estudar. Não conseguia fazer o quatro. Já me via capinando pelo resto da vida. Desapontei a Tia Vera que era a pessoa mais importante que eu conhecia porque era professora. Estava ali, em frente a ela, fazendo aquele papel. Eu tive um vizinho, jovem ainda, que se suicidou, e eu desconfio que foi por problemas na escola.

 

Ela apagou mais uma vez a linha de quatros e me devolveu o caderno. Eu fiquei em choque, não consegui voltar para a carteira. Ela atendeu mais um aluno.

 

Depois pegou meu braço, me fez dar a volta na mesa e ficar ao seu lado. Passou o braço esquerdo pelos meus ombros e me assustei com o calor e o perfume dela. Com a mão direita segurou a minha mão e, sem dizer nada, foi riscando até completar o quatro. Repetiu mais uma, duas, três vezes.

 

Depois me desabraçou, obrigou a olhar para ela, sorriu e emendou em outros afazeres e atendimentos. Eu voltei como um autômato pra carteira e continuei a linha de quatros ainda em choque. Sim, o quatro era uma cadeira, mas de cabeça pra baixo.

 

Eu passara no primeiro concurso, era um aluno possível, não ia mais capinar pelo resto da vida e a professora ainda me amava. Estava em transe quando a aula acabou e custei a retornar para este mundo.

 

Quando contei em casa a minha vitória, ninguém se importou. Adultos não compreendem as grandes conquistas, talvez por isso estão sempre derrotados.

Comentários

Soraya Jordão disse…
adorei! que os adultos possam refletir sobre suas durezas.

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