CÍRCULOS >> ALLYNE FIORENTINO
Há um abismo. E você quase cai. O coração acelera. Sempre
quis saber qual a sensação de alguém que escolhe cair de vários metros ao chão.
Um desejo recluso no peito. Arrepender-se-á talvez? Ou será como nos sonhos? Em
que você sempre acorda antes de chegar ao chão. E se não acordássemos? E se não
acordássemos mais.
Há uma porta. Do outro lado te esperam. Você não quer ir,
quer adiar. Quase cai novamente. E se eu não for? Se eu me recusar a fazer o
que eles querem. Se eu decidir que mudarei a rota. Não adianta me esperarem. Eu
pretendo demorar. O coração acelera. Você já estava quase lá. Por que voltou?
Eu sei o que você quer ver. Seu demônio te espera quando abrir os olhos, mas
pra isso é preciso cair no abismo antes. Por que você não cai? Por que resiste
tanto?
Um salto mais brusco e você está em frente a um rio. Não era
bem onde eu imaginava estar. Águas caudalosas e turvas não permitem ver o
fundo. Tem alguém do outro lado. Mas as águas sobem aos céus, viram fumaça
branca e granulam a vista. Quem é essa mulher? Pergunto (Pergunto a quem?): “É
a mulher que você prometeu sussurrar do outro lado do rio” - Ele responde (Ele
quem?). O coração acelera de novo. Estamos de novo na borda do abismo. Quantas
vezes eu voltarei aqui? A ideia de um inferno cíclico assombra os homens. As
mulheres não, elas estão acostumadas a círculos, ciclos e também a infernos.
Ando prometendo coisas que nem sei. Ando sussurrando mulheres
com língua de serpente sem saber. Há coisas que só fazemos no feérico. É certamente
o dia delas chegando. No último dia de outubro nós nos
sussurramos todas. Criamos corpos sobre corpos, sobre corpos, sobre corpos...
Do que você está falando? De assombros. Que horas são? O coração acelera mais
uma vez. Dessa vez os batimentos me acordam pra valer. Bato o braço na mesa de
cabeceira. Já se passaram duas horas. Duas horas meio perdidas. Duas horas de
não sono, de delírios. Eu preciso acordar cedo.
“É a mulher que você prometeu sussurrar do outro lado do rio”
– penso. Que frase vívida! Eu costumo fazer poesia enquanto durmo. Eu costumo
ser Eva quando durmo.
______
Imagem: Freepik


Comentários