COM A GRANDEZA DE UMA MENINA >> ALLYNE FIORENTINO

 



—  Ai, eu acho que não quero falar, não. Eu tenho vergonha. O que eu preciso mesmo dizer? 

— Diga o que você quiser, Bianca. Agradeça pelo ano, incentive-os. Nada demais, improvisa. 

— Ah! Não. Olha as minhas bochechas, eu já estou toda vermelha. Meu coração acelerado, daqui a pouco as mãos estão suando. Não quero.  

— Bem, eu vou começar falando, depois vou abrir o microfone para quem quiser falar. Vai pensando aí... Se você quiser, lá na hora, você fala.  

Disse isso já com a mão na maçaneta da porta, prestes a entrar. Eu, que também estava lá fora verificando uma série de dinâmicas que tínhamos planejado, consegui ouvir esse finalzinho de conversa enquanto entrava na sala juntamente com os dois. Quando entramos, todos estavam já sentados em círculo, com as camisetinhas “Somos Foda” bombando no peito, os projetores ligados, coffee breake servido, ouvidos atentos para o que o chefe iria dizer sobre o trabalho que fizeram durante todo o ano que passou e sobre as grandes e prósperas oportunidades que teriam no ano posterior. Sobre isso ele teria de ser criativo porque nem ele sabia o que estava por vir, mas ele nos ensinava que há sempre alguma coisa por vir, embora ela não tenha vindo nunca.

O importante era ser resiliente, envergar sem quebrar, ser maleável, cair e levantar depressa, dar a volta no problema, voar como a águia, ser inteligente como o lobo. Sempre me perguntei por que as cobras e as hienas nunca eram usadas como exemplos de característica que um humano deveria seguir. Uma pena, já que a cobra é fria e se rasteja aos pés dos outros, e a hiena, quase brasileira, ela ri dos seus problemas, tudo isso fazíamos sempre. Eu mesma desconfiava que éramos apenas bichos bestas e acuados, mas isso não vinha ao caso naquele momento.   

E foi gráfico colorido pra cá, gráfico animado pra lá, números incríveis, que realmente parecem ser incríveis, no sentido de não críveis mesmo: é muito trabalho pra pouco funcionário! Faltou só jogarem fumaça e um estroboscópio e estaria arrumada a festa. Os slides cada vez mais ousados, com músicas de impacto e tudo -o designer estava quase formado em marketing, já que tinha que transformar um grão de areia em uma praia inteira, com direito a coco e a guarda-sol.  

Claro que tudo poderia ter sido resumido em uma hora de conversa, mas, como ele sempre nos ensinou, o mundo corporativo não é exatamente sobre o quê, mas sobre o “como”É sobre que tipo de show é possível produzir com quase nada. O chefe não entendia que a filosofia dele se aplicava a qualquer coisa, ele mesmo não fazia ideia da grandeza daquilo que ele dizia. Não por ser uma técnica a ser seguida, mas como um Guy Debord, sem saber que estava descrevendo uma sociedade de espetáculo. A diferença é que Debord denunciava; e o chefe, bom, ele era coach, ele, por vezes, mentia e acreditava na sua própria mentira. É até divertido esse jogo, a gente tentar encontrar nas pessoas a “autopsicopatia”, palavra que devo ter inventado, mas seria o quanto você é capaz de se autoenganar, assim como enganaria a qualquer um.  

Mas a Bianca estava lá, fazendo a sua cara de boazinha sempre, sendo fofa e doce, como o chefe gostava. Resiliente, ele diria. Eu teria outras palavras para isso, menos bonitas, mais realistas, menos machistas, mas se eu as dissesse, não teria a grandeza de uma menina, nem de uma mulher, nem estaria em versos de música do Cidade Negra, por exemplo... Seria uma mulher sem grandeza se eu dissesse a verdade sobre o que os homens acham que é uma mulher grande: aquela que se apequena para eles.

O chefe finalmente havia terminado e abriu o microfone para quem quisesse falar, olhou pra Bianca - ela corou. Ficou assim por alguns segundos, entre “vou ou não vou?”, “será que tenho competência pra isso?”, “será que tenho o que dizer?”.

Nisso o chefe coach tinha razão, era preciso aproveitar as oportunidades que apareciam, porque nesses segundos em que Bianca pensava se ela era “grande” ou não, o supervisor se adiantou, pegou o microfone e começou a falar, com segurança, com a mão firme, a voz clara, sem tremer, sem gaguejar, sem titubear, sobre educação e liderança, como se sempre tivesse feito aquilo. Ele, que nem era daquela área, não entendia nada daquilo, mas era homem. E Bianca? Ela era a coordenadora e tinha muitos diplomas sobre aquilo que ele estava falando.

É que o verso da música estava errado: pra ser homem sempre tiveram de se aproveitar da grandeza de uma mulher.

______________________________

Imagem Freepik.


 

Comentários

André Ferrer disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
André Ferrer disse…
O mundo corporativo precisa ser implodido. Quanto ao Toni Garrido, eu acho que a culpa é do aumento da expectativa de vida. Quando os poetas morriam jovens, não tinham tempo para arrependimento e revisionismo.

Postagens mais visitadas