Primeiro desamor >> Alfonsina Salomão
Ouvi isso do meu filho de nove anos outro dia. Estávamos andando na rua, voltando pra casa. Quando cheguei na escola, ele estava calado e cabisbaixo. Estranhei — normalmente, assim que o Enzo me vê, ele abre os braços, dá um sorrisão e corre até mim. Ou, nos piores dias, faz cara feia, abre minha bolsa afobado à procura do lanche, diz que está morrendo de fome e me xinga entre os dentes pelo meu atraso. Mas essa reação — silêncio e olhos no chão — foi a primeira vez que vi.
Não hesitei, procurei um amiguinho por perto e fui investigar:
- O que aconteceu com o Enzo?
O rapazinho, loiro e com óculos de Harry Potter, olhou para o lado e balbuciou:
- Não sei se posso contar.
- Pode sim, sou a mãe dele – retruquei, sem muita piedade pela lealdade da criança.
- Eu não sei se posso... – ele ainda tentou resistir, mas, ao ver que eu não estava para brincadeiras, se deixou intimidar e soltou:
- A Ana não ama mais ele.
Larguei alguns pedaços do meu coração ali mesmo, no pátio da escola, e caminhei ao lado do Enzo, compartilhando o silêncio da sua dor. A verdade é que não poderia fazer outra coisa, simplesmente não estava preparada para isso. Sequer sabia que crianças de nove anos sofriam por amor.
Chegando em casa, ele — que me deixa quase louca cortando papéis, achando pedaços de madeira para martelar, desmontando coisas para ver como funcionam e fuçando no reciclável para inventar objetos improváveis — se jogou na cama e ficou lá, imóvel, com toda a desolação do mundo estampada no rosto.
No dia seguinte, acompanhei-o até a escola. Queria ver a Ana, ao menos de longe, ver a reação do Enzo quando ela chegasse. Fiquei imaginando seu coraçãozinho batendo forte, mas ele não deixou nada transparecer, o que me deixou aliviada e orgulhosa. Na saída, corri até a mãe dela e puxei papo. Quando percebi, estava dizendo o quanto meu menino é incrível e especial, convidando-a para vir tomar café em casa com a filha. Eu podia me ver naquela situação absurda, querendo conquistar a mãe da Ana para ela voltar a se apaixonar pelo meu filho, mas a consciência do ridículo era menor do que minha vontade de fazer qualquer coisa que arrancasse o Enzo daquela tristeza.
Felizmente, no dia seguinte ele trocou a melancolia pelo combate. Me pediu que o acordasse às seis da manhã, queria tomar banho antes da escola e se arrumar, para a Ana voltar a gostar dele. Tive medo dele se frustrar ainda mais, mas não é que ela disse que ainda o amava? Ele voltou a agir normalmente, ainda que, poucos dias depois, tenha me confidenciado que suspeita da Ana ter mentido, pois ela brinca muito mais com o Hugo do que com ele...
A mãe da Ana não me deu muita esperança. Me disse que a menina puxou a bisavó, que teve muitos amores e, aos setenta, namorava um homem trinta anos mais novo... Disse-me então que talvez eu deva preparar o Enzo para o fato de que amores vêm e vão, são aves de verão, como diz a canção. Mas como explicar a uma criança algo que nós mesmos temos dificuldade em compreender? Isso me lembra outra música, desta vez do Legião Urbana, onde o Renato Russo afirma que pais “são crianças como você, o que você vai ser, quando você crescer”. Lembro de ouvir essa música e ficar intrigada. Hoje, adulta, escuto a frase tocar na minha cabeça com uma certa frequência. Ela ressoa com meu sentimento, e faz mais sentido do que a maior parte das coisas que ouço. Mas isso é tema para outra crônica.
ps: se você ficou curioso para saber como se iniciou esta historia de amor, ela está aqui: http://www.cronicadodia.com.br/2025/02/primeiro-amor-alfonsina-salomao.html
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