DUAS GARRAFAS DE VELHO BARREIRO >> JANDER MINESSO

 

Puxei assunto com a Ceiça na pausa do almoço. Descobri que ela mora para lá de Santo Amaro e é copeira desde os treze.

Conceição também me contou que não gosta de vagabundo. Isso vem desde a época em que morava na favela com a mãe, que sustentava as três filhas com os proventos de sua vendinha. Certa feita, quando tinha lá seus dezesseis anos, minha colega precisou tomar conta da venda durante um sábado, enquanto a matriarca levava a caçula ao médico. Pouco antes do almoço, dois vagabundos entraram na loja e exigiram duas garrafas de Velho Barreiro, de graça. Ela negou.

Os desocupados encararam-na por um tempo e prometeram voltar mais tarde. Mas primeiro, voltou a mãe com a caçula. Ceicinha relatou o ocorrido com riqueza de detalhes: as roupas que eles vestiam, o jeito de falar de cada um, o cheiro de desodorante barato e suor que empesteava o ar… foram tantos pormenores que a dupla teve tempo de voltar à venda. Antes que a mãe pudesse dizer qualquer coisa, um deles passou uma rasteira na Conceição e deu dois chutes na cabeça dela. Abriu um talho desse tamanho do lado do olho.

Ceiça soube de muita coisa naquele dia. Primeiro, descobriu que os dois vagabundos tinham um irmão mais velho, que cumpria pena no interior. Descobriu também que eles viviam de pequenas ameaças veladas na favela e sábado era o dia em que pegavam duas garrafas de Velho Barreiro na vendinha da mãe antes de seguirem para um boteco perto da Guarapiranga. Lá, bebiam e jogavam dominó até o sol baixar. Quem contou tudo isso foi seu tio, que apareceu para uma visita algumas horas depois do ocorrido. Na mesma conversa, ela soube que o tio era da polícia.

Isso tudo aconteceu num sábado, ela fez questão de reforçar. Uma semana depois, o tio voltou com seu Corcel marrom e chamou a sobrinha para um passeio. No caminho, pediu que ela vestisse um pano na cabeça e um par de óculos escuros. Rodaram sem pressa até a Guarapiranga, debaixo de um mormaço sonolento. Já passava do meio-dia quando o tio encostou a meia distância de um boteco que beirava a represa. A maior parte das mesas estava tranquila, exceto uma, que tremia sob a algazarra de um bando de moleques. eles jogavam dominó enquanto secavam a segunda garrafa de Velho Barreiro.

– São aqueles dois ali?

Ceiça confirmou. O tio engatou a primeira marcha e tomou o rumo de volta à favela. Durante todo o percurso, ficou cantarolando Jesus Cristo, do Roberto Carlos. Algumas famílias ainda almoçavam com as portas abertas quando ele deixou a sobrinha em casa, deu meia volta e foi embora.

– Cê entendeu, né?

Depois de me fazer essa pergunta, Conceição deu o último trago no cigarrinho e voltou ao trabalho.

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Comentários

Anônimo disse…
Algo me diz que a Ceiça não contou tudo, mas, de algum modo, acho que EU entendi.
Nadia Coldebella disse…
Também acho que entendi. Já era playboy? Credo Jander.
Anônimo disse…
O gosto do troco.
Anônimo disse…
Siu eu, a anônima Soraya
Zoraya Cesar disse…
Todo mundo devia ter um tio desses. Eu queria ser esse tio.
Ana Raja disse…
Nada como um dia atrás do outro!

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