CASA, CHEIROS E SONS >> Sergio Geia
Minha filha chegou ontem e dorme no meu quarto, estou na sala. Não. Não dorme. Aliás, lembro da lição, Noemi Jaff, aplica-se às palavras, mas funciona aqui também, penso: o escritor deve zelar pela exatidão. Ela não dorme. Está deitada na minha cama com seu kindle, lendo — o que você está lendo, amor? —, hum, lendo Elena Ferrante; nada mais exato que isso.
Não sei a razão, mas percebo um pensamento, coisa louca isso, e agora me imagino nela, na minha filha, na cama, a ouvir os sons da casa enquanto lê. É bom ouvir os sons da casa.
Para um domingo que apenas começa acho que já fiz barulho demais. Abri e fechei portas e janelas, liguei chuveiro, máquina de lavar, lavei louça. Num momento pensei, “não”, mas, agora, num segundo momento, penso, “sim”, que esses ruídos, tão comuns em qualquer cotidiano, fiquem em sua memória.
A casa se acalmou. Estou sentado à minha mesa de trabalho. E nessa calma mansa, uma nova ordem de sons. Primeiro a música que sai da vitrola. No Instagram, Boni, o antigo chefão da Globo, indicava boas músicas, contou até história. Um restaurante que todo mundo frequentava no Rio pediu indicação de música ambiente, isso, há muito tempo. Para restaurante, música instrumental, pensou, a mais adequada para uma refeição tranquila e ao mesmo tempo o ouvido recebendo coisas agradáveis. A playlist com o melhor do jazz que Boni preparou para o restaurante está no Spotify, para quem quiser (Boni Antiquarius). Baixei. E é essa melodia sofisticada que toca agora e que chega aos ouvidos dela; Ferrante com jazz.
O arrastar da cadeira, ouço o som, antes de me sentar: lá vai o pai escrever de novo, como escreve, deve ter pensado. E além dos sons, cheiros, incenso de baunilha que acabo de acender, daqui a pouco, comida de fogão.
Outro dia encontrei um amigo arquiteto. Ronaldo é bom de papo, daqueles sujeitos que pensam fora da casinha. Ele me disse que as tendências de cores para as casas hoje são o preto e o cinza, que quadro não se pendura mais na parede, fica no chão ou sobre um aparador; que em sua opinião, essa tendência esquisita é reflexo do que acontece no interior das pessoas. Veja as casas de ontem e as de hoje. Para ele, a casa deve ser colorida, ter cheiro de cebola, alho e bolo.
Espio. Minha casa não tem cinza, nem preto (ufa!). Tem azul. E amarelo. E mostarda. Em minha sala estou rodeado de livros, fotos, há música o tempo todo (tem até um violão), e cheiros (incensos), e bebidas (uísque, vinho, cachacinha). É pequena a minha casa, mas nela me sinto bem; minha casa é o meu lar.
Lá na frente, penso, quando não estiver mais aqui, que lembrem dos cheiros do pai, dos sons, nem que seja uma lembrança vaga ao ouvir uma música na rua, nossa, o pai gostava de jazz, eu vou sorrir.
Ilustração: Pixabay
Comentários
Antes era a gente que ouvia os sons da casa, agora são nossos filhos. É uma baita responsabilidade. Minha filha autista vive dizendo que o mundo perdeu a cor, está mais cinza. Eu acho que andamos mais deprimidos.
Agora, nas últimas duas crônicas suas senti uma mudança de tom, uma densidade que não é muito comum nos seus escritos. Eu gostei muito dessa sua versatilidade. Estou curiosa pra ver o que vem pela frente!
meu amigo.