PARAÍSO INCANDESCENTE NA TERRA PLANA >> Albir José Inácio da Silva

 

Queria me dedicar apenas às coisas do espírito, tentações e castigos, mas sou obrigado a lidar com política e outras abominações da genialidade humana.

 

Genialidade sim, mesmo que pareça difícil surgir alguma coisa genial dessa raça, temos de reconhecer que ela tem resistido com alguma competência à nossa autoridade.

    

As tragédias são nossas principais aliadas na administração dos humanos.

 

As naturais - pragas, vulcões, dilúvios - foram durante muito tempo uma arma eficaz para desintegrar comunidades inteiras. Tivemos muito sucesso com as maldições na antiguidade, a febre bubônica na idade média e a gripe espanhola no século XX, mas está cada vez mais difícil contar com estas calamidades.

 

Com o desenvolvimento da maldita ciência, os humanos conseguiram maneiras de amenizar ou se defender dos ataques do clima e das doenças. Por mais que tenhamos perseguido, banido e assassinado cientistas, eles parecem brotar da terra, neutralizando, quando não aniquilando, nossas iniciativas.

 

Quando falha a natureza, temos de recorrer à política. Confesso que não gosto dessa alternativa porque tenho de lidar com os humanos, em vez de simplesmente contar seus corpos. Mas a guerra é sempre um bom investimento. Nela todos perdem, só eu ganho: quem mata é meu e quem morre, tentando matar, também é.

 

Nas guerras, ao contrário das tragédias naturais, a ciência mais ajuda que atrapalha. Os engenhos militares estão cada vez mais mortíferos e podem ser a solução final.

 

Mas aí também temos de enfrentar os pacifistas com sua covardia. Conseguimos manter alguns conflitos isolados, mas uma guerra total, como fizemos no século passado, está cada vez mais difícil.

 

A política sozinha é um pesadelo de incompetência e indecisão, com suas negociações de paz, acordos antinucleares e toda uma parafernália para solução de conflitos e limitação de armas. Já nos impôs grandes derrotas quando racional e científica, mas, aliada à religião, a política já alcançou os maiores feitos da História.

 

Basta lembrar dos massacres sofridos ou perpetrados no antigo testamento pelos Hebreus, que continuam até hoje matando e morrendo por Canaã.

 

Não esqueçamos as perseguições aos cristãos pelo império romano, até que este também se tornasse cristão e impusesse a fé pela força da espada nas cruzadas e fogueiras da inquisição.

 

Na modernidade, os reis ungidos massacraram - em nome de Deus, mas a nosso serviço -camponeses e súditos pobres dos seus ou de outros reinos na Europa e nas colônias.

 

Trouxemos da África milhões de almas que precisavam ser salvas e seus corpos foram dilacerados na missão de encher os cofres dos impérios coloniais.  Sempre há um sacerdote a postos para abençoar as guerras, ungir e justificar os grandes massacres.

 

No século XX Adolf e Benito foram parceiros importantes, mas efêmeros e idiotas como todo ser humano. Em uma década estavam aniquilados, com graves prejuízos à imagem de nossa causa. O mundo falaria mal deles por gerações.

 

Mas agora está pior. Nosso empreendimento tem uns neófitos raivosos e sem lustro, que nada sabem de história ou filosofia, terraplanistas da política, preocupados em locupletar-se no curto período em que ficam no poder. São incapazes de convencer as pessoas com um discurso coerente e utilizam robôs para guiar cegos pelas redes sociais.

 

Escondem-se atrás de reverendos vendilhões, que também só se preocupam com carros, mansões e roupas de grife.

 

Nossos parceiros atuais são figuras arrogantes e patéticas, nem temidas nem odiadas, apenas ridicularizadas. Acabam na cadeia ou desmoralizadas por seus próprios seguidores. Viram chacota nos memes e nas redes. Tempos difíceis!

 

Neste século, fracassadas as tentativas de guerras mais produtivas, revisitamos as tragédias naturais. A covid-19 tinha potencial para estabelecer o caos desejado.

 

Conseguimos fazer um estrago razoável, arrastamos milhões para as covas coletivas, mas novamente a ciência barrou nosso caminho. No auge das comemorações, quando já contávamos os mortos por minuto, inventaram a vacina.

 

O que deveria levar cinco, dez anos, e nos daria tempo para exterminar boa parte dos imprestáveis humanos, foi concluído em meses.

 

Alcançamos até algumas adesões, uns poucos médicos pregaram contra a vacina, prescrevendo vermífugos e antimaláricos. Com pouco tempo de vacinação, nossa campanha estava liquidada.

 

Mas eu nunca desisto. Há oito bilhões de almas a serem conquistadas.  Tenho tempo e paciência. E surge uma nova esperança: os humanos não se importam com os alertas dos malditos cientistas sobre o clima. O aquecimento é um caminho promissor.

 

Vejo vocês em breve no meu paraíso ardente e acolhedor!

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