DO ONTEM AO AMANHÃ >> Carla Dias


Às 23h59, o alarme do celular ordena o comprimido antes do jantar. Ela o engole, desafiando a ligeireza dos ponteiros a gestar segundos aliciadores de fim. Janta sempre no dia seguinte ao almoço do dia, virou hábito, e sabe bem acomodar uma boa rotina no calendário de desfeitos. Janta desalimentos, que inveja o espaço residente na falta, um compasso aninhador de possíveis sonoridades que não as conversas abafadas vindas de cômodos – sala, cozinha, quarto, banheiro – de outros apartamentos. Então, abarrota a falta com barulhos de mastigáveis imitadores de prazer, os mesmos que, dali a vinte minutos, irão condená-la à culpa cabível aos que não sabem preencher vazio com a decência de mantê-lo intacto, pagador corretíssimo de conta de débitos ao destino; sujeitos a o estufarem com tentativas vãs de empanturramento módico por saciamento breve, a fim de mostrar a ele o quão indigno é de não ter sido escolhido para ser habitado.

Do quão indigna do papel de companhia e acompanhada ela é.

Cogita um esquecimento seletivo: uísque, cerveja, água com gás, café, lavação de louça do almoço de ontem, olhar vagueador dedicado à avenida no abandono de madrugada fria. Adora avenidas desabitadas de carros e de gentes, feito cena de filme que não acaba bem, mas e daí? A beleza que há em finais de filmes fica represada no delírio dela de, dia desses, vazar todas as certezas; desembocar no rio dos medos a coragem de não se importar, apesar do que dizem, do que pensam, do que buscam. Apesar do que diz, do que pensa, do que busca... 

Do que sente.

Acha sentir um exercício cruel se praticado no ritmo da generosidade incontida. Houve vários quandos nos quais assistiu cenas de fazê-la sentir como se a morte tragasse sua vida pela boca, a língua ensebada dela interrogando seus temores, enquanto o dia vibrava um sol de oportunidades das quais jamais desejou desfrutar; com as quais aprendeu a necessidade de sobreviver a si antes de tentar sobreviver a todo o resto do mundo, acontecimentos e pessoas.

Leva o cobertor para a sala, quer dormir escutando a voz de telejornal repetidor de ocorridos já noticiados no dia anterior. É assim que, antes de o comprimido fazer efeito, ela repele o presente, enquanto o passado se dissolve em um futuro que ela não sabe imaginar como poderia ser. 

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Meu livro mais recente: editorasinete.com.br/prisao-flores-e-luar

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