DO ONTEM AO AMANHÃ >> Carla Dias
Do quão indigna do papel de companhia e acompanhada ela é.
Cogita um esquecimento seletivo: uísque, cerveja, água com gás, café, lavação de louça do almoço de ontem, olhar vagueador dedicado à avenida no abandono de madrugada fria. Adora avenidas desabitadas de carros e de gentes, feito cena de filme que não acaba bem, mas e daí? A beleza que há em finais de filmes fica represada no delírio dela de, dia desses, vazar todas as certezas; desembocar no rio dos medos a coragem de não se importar, apesar do que dizem, do que pensam, do que buscam. Apesar do que diz, do que pensa, do que busca...
Do que sente.
Acha sentir um exercício cruel se praticado no ritmo da generosidade incontida. Houve vários quandos nos quais assistiu cenas de fazê-la sentir como se a morte tragasse sua vida pela boca, a língua ensebada dela interrogando seus temores, enquanto o dia vibrava um sol de oportunidades das quais jamais desejou desfrutar; com as quais aprendeu a necessidade de sobreviver a si antes de tentar sobreviver a todo o resto do mundo, acontecimentos e pessoas.
Leva o cobertor para a sala, quer dormir escutando a voz de telejornal repetidor de ocorridos já noticiados no dia anterior. É assim que, antes de o comprimido fazer efeito, ela repele o presente, enquanto o passado se dissolve em um futuro que ela não sabe imaginar como poderia ser.
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Meu livro mais recente: editorasinete.com.br/prisao-flores-e-luar
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