DUAS TORTAS >> JANDER MINESSO

 

Fui numa padaria tradicional na Treze de Maio. Era domingo e queria uma sobremesa para o almoço da família. Comprei duas belas tortas, uma de ricota e outra de chocolate, que me foram entregues numa sacola de papelão reforçado e com o logotipo da padaria em alto relevo.

Saí dali e fui curtindo o céu azul de inverno no caminho de volta. Imaginava o almoço próximo: todos à mesa, relembrando as histórias de sempre e rindo das mesmas piadas. A imaginação me esquentava a alma e o sol me esquentava a pele.

Aí, um cara na rua me interpelou:

– Sobrou alguma coisa, amigo?

O homem olhava para a sacola com logotipo em alto relevo. Ele ajeitou o cobertor em volta do corpo e meu nariz foi invadido por um cheiro de merda velha que embrulhou o estômago. Restos de unha amarelos e roxos pendiam daqueles dedos.

Me senti mal pelo preço que paguei nas tortas. Depois, achei um abuso alguém pedir comida na saída de uma padaria tradicional da Treze de Maio. Quase entreguei a sacola, mas tinha aturado muito desaforo no trabalho até receber o salário do mês. Quase voltei para comprar um pão e alguma coisa para colocar dentro, mas a fila do caixa era imensa. Quase fiz um monte de coisas. Mas o que fiz, mesmo, foi responder, mais para o chão do que para o homem:

– Sinto muito.

E apressei o passo.

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Imagem: congerdesign por Pixabay

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Que crônica árida! Vou digerir mais um pouco o poder do quase. Mas quero dizer q quando confrontado com as mazelas desse mundo, um ato justo e mesmo um direito ( por exemplo, usufruir das tortas com o fruto do trabalho) soa como um grande ato de egoísmo. É uma tremenda saia justa moral!

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