NÃO HÁ NADA A SER DITO >> ALLYNE FIORENTINO
Estou há dias em silêncio. Tenho
lá minhas ressalvas com as palavras e com a presunção. A vaidade de ter sempre
o que dizer nos deixa enfraquecidos. Permito, então, que os olhos vagueiem
atentos e livres. Eles, quase orando para que novos movimentos alimentem suas
retinas famintas. Nesses tempos em que estamos ouvindo pelos olhos, deixo que absorvam
as palavras de outrem como uma esponja infeliz. Antes de qualquer coisa é:
parar, respirar. Ou parar de respirar – ah! se meus pensamentos intrusivos
falassem!
No interior, onde o tempo corre
mais devagar, temos o dom de tornar qualquer assunto, um tema “de interesse
público”. Quem nunca teve de fazer sala pra visita? Sentar-se em uma poltrona, sem
nenhum tipo de traquejo social na tenra idade, sem repertório algum para
desdobrar um assunto, sem que a visita adulta te poupasse dessa miséria social, quebrando o silêncio vexatório com algo que você realmente pudesse responder
com propriedade. Não. Nunca fomos poupados. E passamos todos por essa vergonha,
quando nas cadeiras ou sofás, nossos olhos miravam os próprios pés, pensando
quando aquele tédio doloroso seria rompido. A mãe sempre vinha nos salvar,
quando ela finalmente despontava com a bandeja de café na mão.
No interior é assim, são sempre
eternas tardes de tédio em busca de um assunto corriqueiro. Isso faz com que
assuntos originalmente privados deslizem pelo limite da privacidade e do
bom-senso e tornem-se de interesse público. E há um pacto tácito entre os
conversantes: todos, no fundo, sabem que aquilo não importa a ninguém, mas é um
“rompe tédio”, uma estratégia para “despensar” pensamentos perigosos. Alguns
questionamentos sucessivos nos deixariam descompensados. E isso não é bom pra
cabeça, diriam os mais velhos.
Há anos sabemos que tudo já foi
dito. É um choque a todo jovem literato saber disso, assim, de pronto, em uma
aula de teoria literária, sem cuspe nem lubrificante antes. Depois passamos a
aceitar e quase a esquecer dessa informação. Mas, outro dia, eu a ouvi novamente, pela boca de uma mulher, mas em outro contexto. Nunca pensaríamos que ela atravessaria os livros e
chegaria às conversas cotidianas. A internet democratizou tudo, até a nossa
incomensurável finitude. A verdade é que todas as nossas vergonhas já estão postadas.
Todas as frases motivacionais já
foram ditas e postadas, as famosas e não famosas, as inventadas e as
atribuídas. Tudo que se podia dizer sobre moral, ética, comportamento humano,
fofocas, teorias da conspiração, livros, putarias, hipóteses, assuntos de
extrema intimidade, assuntos de máximo segredo de estado etc. etc.: tudo já foi
dito. E, assim, continuou ela dizendo: em dado momento em
que tudo já tenha sido dito, só nos restará sentir.
E lá estava eu de novo, como se estivesse sentada
na sala de aula estudando teoria, com o mesmo choque e o vazio de saber
(novamente!) que tudo já foi dito. Vendo, com meus olhos fatigados, “na extrema curva do caminho extremo”, que os assuntos tratados por todos descendem de algum lugar misterioso,
memético, de onde escolhe-se que a conversa da vez será sobre a separação de tal
casal de famosos ou de bebês reborn. A partir daí, inicia-se uma corrida
desembestada e tudo passa a girar em torno desse tema até esgotá-lo... até
esmigalhá-lo, com dedos odiosos esfarelar seu corpo original, jogando sal no seu campo
semântico para que dali não possa mais brotar nenhuma planta razoavelmente
sensata. Esvaziado pelo próprio excesso. E, no fundo, todos sabem que nada
disso importa a ninguém.
Realmente não há nada a ser dito.
Estou há dias sentindo. Sentindo que estão todos sentados na velha poltrona,
fazendo sala para os seus seguidores, mas dessa vez a mãe não chegará para te
salvar. Pela janela, avistam-se pessoas morrendo de fome, crianças morrendo em
genocídios disfarçados de guerra, um futuro que já nasce morto, mas sua visita
está na sala, é um grande elefante branco, e você não pode se mover: “ – Sim, claro, o problema do mundo são os bebês
reborn, que absurdo, um disparate, uma corja de mulheres loucas, mal-amadas,
histéricas a amar bebês de plástico!” Num mundo de plástico, com
sentimentos plastificados, corpos modificados, gêneros inventados e Inteligências
Artificiais que quase sentem o seu coração cheio de microplástico pulsar. “ – Como pode um negócio desse sentir alguma
coisa? A mulher, eu quero dizer.”
Não há nada a ser dito. É preciso sentir. E eu sinto muito...
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Imagem: Freepik
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