RESGATE DO PASSADO - UMA AVENTURA DO DETETIVE SEM NOME - PARTE UM >> Zoraya Cesar


A mente sombria e inquieta me obrigara a ficar acordado a noite inteira. Às 5 da manhã desisti da cama, preparei uma vitamina de café, rum e ovo e fui correr. O ar frio e a chuva fina arejaram meus pensamentos e o esforço reequilibrou minhas energias. Voltei molhado e enregelado, mas bem disposto. Ia ao enterro de um amigo querido. Um amigo cuja morte eu vingara. 

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Ela marcara horário e fora pontual.  Meu instinto, forjado a fogo e fel, remexeu-se. Uma mulher como aquela jamais seria pontual – estaria acostumada a fazer a Terra parar seu movimento para esperá-la. Era um estouro. Uma morena cor do Caribe de cabelos castanhos escuros ondulados, lábios carnudos e olhos esmeralda. Os seios eram grandes e pesados, mas combinavam com a cintura profunda e sinuosa, as ancas convidativas. Emanava um sex appeal que faria qualquer homem perder a cabeça. A cabeça, o bolso e a vida.

Uma fragrância de mandarina e sândalo espalhava-se pelo ar a cada movimento de seu corpo. Sua voz era macia e ciciante. Dava para imaginar aquela voz e aquele corpo aquecendo um homem durante o mais duro inverno. Era, em suma, irresistível. E quem sou eu, reles mortal, sem a fibra de Odisseus, para resistir ao apelo de uma sereia que chora?

- Estou com um sério problema. Meu cunhado, que me detesta, quer me destruir.

E, enquanto lágrimas que pareciam pérolas desciam por sua cútis perfeita, contou-me que casara com um homem bem mais velho, apesar da oposição quase agressiva da família, principalmente do irmão do noivo. Mas onde há amor verdadeiro, a vitória é certa. Casaram. Viveram alguns meses felizes até que o tal irmão abriu guerra declarada, tentando ficar sozinho com os negócios da família e provar que a sereia era infiel. Mentiras, mentiras, soluçava ela, eu sempre amei meu marido, que mundo cruel! 

- Vim aqui pedir sua ajuda, o senhor é a única pessoa em quem posso confiar, meu marido sempre falou muito bem do senhor. Talvez lembre dele, vocês trabalharam juntos… Victor Sehdi.

Victor Sehdi! Há anos não tinha notícias dele. Ele se mudara para outro estado e assumira os negócios da família. O velho safado então se dera bem na vida. E na cama também, pelo visto. Eu era um novato ingênuo e tolo, cheio de ideais e crente na natureza humana quando nos conhecemos. Seis meses depois de trabalhar com Victor, meu superior e supervisor, minha cabeça virara pra baixo. E dessa estranha e incômoda posição vi o mundo como ele era: sórdido, cruel, pervertido, inconstante. Belo e selvagem. Vocês podem se escandalizar, mas, acreditem, no nosso ramo, essa visão aparentemente distorcida é o que, muitas vezes, salva nossas peles. A vida não é para diletantes. E, como diz meu herói, Riobaldo Tatarana,



Então, de certa forma, devia muito a Victor Sehdi. Ele me ajudara a ser um bom profissional, a aproveitar a vida, a sobreviver. Muito mais velho e experiente, ensinara-me tudo o que sabia e um pouco mais. Quando se aposentou – voluntariamente, o que já é um feito e tanto no nosso ramo: geralmente saímos mortos – ajudou-me a subir na carreira e passou todos os seus contatos e clientes. Achava que nunca viveria o suficiente para devolver-lhe os favores. O tempo passa, o mundo dá voltas e eis que aparece em meu escritório a mulher dele! Pedindo ajuda. Mas, ela vestia-se inteiramente de preto. Seria uma arma de sedução? Ou estaria enlutada?

- Senhora, em quê, exatamente, posso ser útil?

Ela sofregou os soluços discretos e as lágrimas elegantes, arfou, fazendo os seios subirem e descerem quase obscenamente de tão tentadores, e cravando aqueles olhos verde esmeralda nos meus, declarou, a voz trêmula:

-Victor… - mordeu os lábios com dentes grandes e alvos, dentes capazes de arrancar o coração de um homem – Victor está morto.

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Continua dia 9 de julho

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Citação de Riobaldo Tatarana in 
Grande Sertão: veredas. João Guimarães Rosa. Leiam. Leiam

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Imagem do Enforcado:
https://pixabay.com/illustrations/hanged-man-tarot-card-magic-6016939/
Image by Virgo Gemini from Pixabay 

Comentários

branco disse…
estava sentindo falta de seus "contos noir", que tão magistralmente escreve.
as primeiras canetadas já são uma promessa que esse vai ser dos bons e até hoje milady nunca deixou de cumprir.
esperando .... que venha sua criatividade e sutileza ao nosso encontro.
Érica disse…
Comentários só dia 9 de julho kkk
Marcio disse…
Zoraya, que início espetacular! Parabéns!
Sou obrigado a quebrar a minha regra - tantas vezes quebrada, admito - de não comentar textos ainda não concluídos.
E ainda cometi o erro de principiante de ver o vídeo antes de ler o texto, o que só aumentou minha ânsia pela leitura.
Para não deixar o comentário sem uma cretinice sequer, devo dizer que pensei que o trecho "Às 5 da manhã desisti da cama, preparei uma vitamina de café, rum e ovo e fui correr" iniciaria a descrição de uma tentativa de suicídio.
Mas, se era isso mesmo, deu errado para o personagem - e muito certo para os leitores.
André Kemper disse…
Sensacional esse início! Muito intrigante! Confesso que meu último pensamento foi: dia 9 ainda está longe... Parabéns, menina!!
Clarisse Pacheco disse…
Essa viúva, hum... se é sereia mesmo vai fazer nosso herói cair no canto, no conto, ou no encanto? Rs
ah, meu Deus, boa coisa daí não vem!

Aliás, vem sim, estamos falando de Zoraya e certamente ela vai nos enredar em mais uma trama tentadora!

Delícia de bom!
Albir disse…
Zoraya, espero que ao final do seu conto eu não esteja convencido de que devo fugir de mulheres bonitas! Eu teria de processá-la por danos psicológicos.
sergio geia disse…
Que categoria de escrita, Zoraya! Sua literatura é das grandes. Estou lendo essa primeira parte hoje. Excelente para mim rsrs. Já vou correndo para a segunda. Bjs!

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