MEU TIO >> Sergio Geia
(No último dia 24/05 meu tio foi embora. Não foi Covid, foi coração. Seu imenso coração não aguentou a puxada; pifou. Morreu dentro de um carro a caminho do hospital; rezando. Fui buscar uma fotografia de um momento gostoso que passamos juntos e compartilho com vocês. “Meu tio”, publicada em 28/05/2019. Espero que gostem da lembrança)
Como um asa-delta ziguezagueando nos céus do Rio; ou como cigarras cantando em tardes quentes de verão; ou como uma daquelas crônicas do velho Braga, bem tarde na fazenda, café preto e broa. Nasceu uma crônica bem família hoje.
É que levei tio Milton pra tomar café. No Jarbas, Largo do Rosário, lugar que tanto ama, de que é freguês antigo. Talvez por essa razão, por se sentir tão em casa, como um comandante experiente de navio, ele assume a dianteira, e apresenta o sobrinho a todos, desde o homem do caixa, fregueses, até as meninas do balcão.
— Olha: o meu é o de sempre — diz tio Milton para uma delas. — Escuta: um cafezinho de coador, pequeno, você derrama numa xícara grande e mistura com um pouquinho de água, mas só um pouquinho — fazendo o gesto de miúdo com o dedo.
A mocinha balança a cabeça e ainda completa:
— E dois canoas.
— Dois canoas! Isso mesmo! Já sabe! — e sorri, satisfeito.
Antes de se sentar, meu tio se dirige ao balcão, pega cinco sachês de açúcar e abre um a um, deixando todos ao seu lado na mesa, enfileirados, meticulosamente organizados, um sobre o outro, fazendo tudo com uma delicadeza que dá gosto.
Depois comenta:
— Sou freguês antigo. Acho que o mais antigo. Ah, você escreveu no livro! — fazendo menção a um livro que a padaria editou e do qual ele, como freguês antigo, participou.
Tomamos café permeado por aquele tipo de conversa que nos leva pro passado, lembrando coisas, e eu, principalmente, ouvindo conselhos.
Antes de pagar ele pede para eu esperar um instante, quer comprar mortadela, a italiana, frisa bem, depois me diz que só gosta da italiana.
— Agora eu como tudo. Não tenho mais idade. Deixa aproveitar o que me resta.
Ainda compra dois pães pra comer com mortadela.
Deixo-o em casa satisfeito. Me pergunta se amanhã eu o pego de novo. Sim, confirmo. Amanhã, na Donabella, digo, uma vez que o Jarbas não abre. Donabella, ele repete, não muito contente. É que da última vez lhe serviram café frio. Não reclamou, tomou mesmo assim, dizendo que talvez não tivessem entendido a orientação que dera sobre o processo de elaboração de seu café.
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