MESMA PÁGINA >> André Ferrer
Fiz um curso de desenho. Um misto de curso de desenho e curso de autoconhecimento na verdade. Enfim, começo com tais afirmações porque a última atividade, no quinto módulo, foi esta: construir um autorretrato. Choque de autoconhecimento.
Tive dificuldades, mas a experiência foi iniciática e catártica. O primeiro choro, a primeira comida sólida, a primeira mancha no lençol, o primeiro gole.
O álcool, aliás, tem sempre um papel nessa história de autoconhecimento, mas cobra, é bom dizer, o seu preço. Talvez, a sinceridade dos bêbados seja um dos atalhos para Delfos onde se lia “Conhece-te a ti mesmo” nas portadas do templo. Suco de limão, hortelã, açúcar e rum cubano também são ótimos oráculos.
A exemplo dos drinques, olhar o próprio rosto por quarenta minutos leva a um estado alterado da consciência. Por isso, eu finalmente compreendi porque os velhos pintores recorriam a seguidos autorretratos quando o absinto não estava à disposição. Certos artistas, de fato, exaltaram a modalidade. Rembrandt, Goya, Schiele.
Eis a "proeza"! |
Antes da minha experiência, eu reputava um ego obsessivo a todos eles, mas penso diferente agora porque a prática, repetida de tempos em tempos, pode muito bem ter algo de alívio. Paradoxalmente, colocar os pés do artista no chão (na medida do possível, é claro). Uma coisa, eu descobri: toda uma carga de enganos acerca de nós mesmos começa a sair das nossas costas.
No início, é difícil. O rosto se transforma e achamos que o retrato nada descreverá. Um fenômeno pelo qual o autorretratado jamais pode se impressionar. Eu prossegui. Apesar do estranhamento — aquele não era eu! —, persisti até que o trabalho chegasse ao fim, eu descansasse por alguns minutos e voltasse a examinar o desenho. Então, só aos poucos, fui reconhecendo a minha imagem.
Pensa-se, durante os primeiros rabiscos, que o retrato sairá infiel. Mais do que o exterior, o interior é o que incomoda e importa. Uma incompetência em relação à imagem do próprio rosto — a coisa mais conhecida na vida (não sendo, a pessoa, um deficiente visual, é claro) —, começa a estimular as reflexões acerca do interior.
Quem diria! Nosso rosto com todas as imperfeições possíveis, passa batido. Pelo menos, foi assim comigo. Um autorretrato, decerto, é a porta de entrada para uma aventura interna. Um rosto, a última fronteira antes de nos encontrarmos com o nosso mais terrível oponente.
Aliás, eu acho que Narciso é um tremendo temerário. Assim, para garantir, eu desenhei um mojito na mesma página.
Comentários
Penso que seja de fato um dos mais temidos e reveladores encontros.
Parabéns pelo texto.
Adorei o texto! Sou fotógrafa e venho me esquivando dos auto retratos tem um certo tempo, talvez seja medo do que vou encontrar! Parabéns pela coragem de seguir!
Sou uma pessoa suspeita pra falar, mas é isso mesmo, mais que o exterior, é o q salta de dentro q incomoda. Eu faço as vezes um exercício de me observar no espelho, mas é estranho e doloroso a gente se ver envelhecer. A implacável consciência da finitude, eu acho.
Adorei! Espero que possamos nos encontrar em muitas crônicas!
O reflexo é talvez o mais impiedoso dos antagonistas.