ÀS ESCURAS >> Carla Dias
Pediram para que eu fizesse paz e fui logo tirando do armário um velho xale de linho: feito à mão, na companhia da mãe de alguém que não conheço.
Pediram para eu fazer paz: cantarolei a canção de infância, saboreei a paixão já adulta, flertei com amor que na minha idade não quer usar carapuças, pede somente um pouco de sol em fim de tarde de verão.
Pode ser que eu pense diferente, que eu sinta e ressinta diferente, que seja diferente o meu caminhar, minha roupa, meu ar de turista da vida, minha palavra de fé preferida.
Ainda assim, às escuras ficará, incapaz de mapear o meu sentir.
Pediram para eu fazer guerra: fui logo negando a missão, amando Gandhis, flertando com a poesia, dançando rock, seguindo procissão nessa vida prenhe de festa, farra, risca-faca, miséria, de olhares amantes e amantes amando feito profetas que, às vezes, são.
Pode ser que eu queira diferente, que eu siga e volte diferente, que seja tão diferente a retórica, difícil de esmolar direitos.
E minha falta de ar de quem parte, mas volta. A palavra de fé: reprimida.
Este texto faz parte do Crônica de um ontem e foi publicado em 16/03/2003, com alguns ajustes.
Imagem: A Conjugal Eclipse, from Another World © J. J. Grandville
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