A MULHER DA ÁRVORE - PARTE 06 >>> Nádia Coldebella

DANTESCAMENTE


Um pássaro preto surgiu com um chinelo azul no bico...


- Mamãe! Mamãe! Não! Mamãe!

A pequena Carolina acordara aos berros. Tudo bem, o pai já estava próximo a caminha. Elísio não dormia direito desde a partida de Vilma, então socorrer a filha não era um grande sacrifício. Na verdade, ele lutava para se manter acordado e ansiava pelos momentos dos pesadelos que se repetiam noite após noite, pois serviam para desviar, por algumas horas, os pensamentos que vinham abarrotando sua mente.

Na primeira noite da partida de Vilma, ele dormira no quarto do casal. Os gritos de Carolina o trouxeram vagarosamente do asfixiante túnel que o havia engolido durante o sono - um túnel que ainda tentaria subjugá-lo cada vez que fechasse os olhos. A cabeça doía, ele estava nauseado e sentia uma convulsão aproximar-se e, se aos poucos não recobrasse a consciência, um observador atento pensaria que a causa daquele estado mental seria a inalação de algum tipo de gás tóxico. No quarto ele se deparou com a criança chorando em profundo desamparo e uma velha deitada, sem mexer um músculo, de olhos abertos. Olhos enormes, esbugalhados, impassíveis, cheios de fúria e desprezo. Elísio lembrou-se dela olhando seu falecido pai assim. O mesmo olhar ela dirigiu para Domênico naquela tarde, mas sairia rapidamente para fazer o café, antes que o policial percebesse. 

Naquela noite, porém, seus olhos estavam vidrados na pequena Carolina e Elísio sentiu um profundo frio subir pela espinha. Ele encarou a mãe com uma certa urgência. Nada disse a ela e ela nada disse ao filho, apenas pegou o travesseiro e foi para o quarto do casal, deixando a cama para Elísio dormir com a menina. A velha retomara o quarto que já havia sido dela e assim a situação permaneceu nos dias seguintes, um trato de não-ditos mas bem compreendido por ambos.

Hoje, porém, mesmo com a aproximação do pai, a criança não parou de gritar. Talvez fosse a presença dos policiais naquela tarde, talvez as lembranças ou talvez o estado de espírito da família. O fato é que os gritos foram se tornando cada vez mais agudos e a criança inquietava-se, em grande desespero. Mesmo com todo o barulho, ouviu as tábuas rangendo e os passos arrastados da avó. Ela parou, amarelada, na porta. Iluminada por alguns raios da lua, estava agourenta, o mesmo olhar furioso e vidrado. Elísio deitou-se ao lado da filha e abraçou-a fortemente, fazendo de conta não perceber a presença da mulher. A criança aos poucos se acalmou e ele pode ouvir os pés pesados dando meia volta no assoalho barulhento. Assim que a criança dormiu, ele sentou-se alerta na cama. 

Quando os primeiros raios de sol deitaram-se sobre a grama úmida de orvalho, Elísio já havia feito o café e arrumado uma pequena mala com as coisas da menina. A levaria para a casa da avó materna, que morava em Nova Semente, cerca de duas horas de viagem dali, e estaria de volta logo no  início da tarde. Já havia ajeitado a criança na cadeirinha e ligado o carro, quando a mãe lhe fez um sinal, dizendo que iria junto. 

Antes que entrasse no veículo, um bando de pássaros pretos voou baixo, muito próximo a ela. Um deles enroscou-se em seus cabelos. A mulher começou a debater-se, aturdida porque o bicho piava cada vez mais alto perto de seus ouvidos. Os outros agitaram-se ainda mais em algazarra, iam e voltavam, em voos rasantes próximos ao carro. 

A velha, que já estrebuchava, ficou repentinamente quieta, imóvel, enquanto o pássaro, todo enroscado, piava pedindo a piedade alheia. Elísio percebeu que ela olhava para muito além das aves. Ele virou a cabeça, porém nada havia lá. Voltou-se para ela, que tinha o olhar vidrado e furioso, embora parecesse estranhamente calma.

Friamente, elevou as mãos até o cabelo e agarrou o pássaro. Uma mão sobre o corpo,  outra na cabeça. Puxou-as em direções contrárias e depois de um breve estalido, a ave logo aquietou-se, morta. Ela desenroscou pacientemente o pássaro dos cabelos, para em seguida, erguer seu corpinho em frente aos olhos ainda vidrados. Um sorriso pairou na boca desdentada. As outras aves já não permaneciam tão perto e assim que a velha jogou o corpo num matagal próximo, elas pousaram, passando a bicar e disputar o cadáver do pássaro morto.

A mão de Elísio tremia e ele sentiu a bile subir pelo trato digestivo. Virou-se para a filha, mas ela estava dormindo, alheia a cena dantesca ocorrida a pouco. Ótimo, Carolina não precisava testemunhar mais nada. A velha entrou no carro e eles partiram rumo a Nova Semente.


Pessoas são cegas, sempre olham o mundo como querem, não como ele é.  Sorte minha, pensou, dando uma conferida no espelho. Estendeu o olhar um pouco mais para ter certeza de que os olhos eram seus. Querem mudar as coisas, mas nada disso. Estendeu os olhos para as próprias mãos e olhou-as demoradamente. Estão cobertas de sangue, pensou. Estendeu o olhar para dentro e procurou alguma culpa, mas não achou nenhuma. O sangue está aqui, pensou, mas ninguém percebe - agora estendia o olhar de novo para as mãos. A primeira vez é mais difícil, tem sempre uma barreira. Mas depois fica fácil. Agora era só satisfação. Tudo já estava no lugar, não precisava mudar nada. Num mundo de egoístas, os egoístas se dão bem, Ninguém  percebe o sangue em minhas mãos, gargalhou-se, porque na verdade, quem se importa? Agora sorria abertamente para o espelho, desejando ver os olhos que não eram seus. Os desafiou: Você só vai conseguir alguma coisa se for a fórceps. 


Mãe e filho voltaram logo após o almoço e encontraram uma grande movimentação ao chegar. Carros de polícia, ambulância, bombeiro e IML. Homens e mulheres, alguns com uniformes militares, outros com macacões e outros à paisana. Alguns próximos a casa, outros a árvore. Ele parou o carro perto da casa e pode ver Domênico sentado no chão da área, escrevendo alguma coisa na terra com um galho de árvore. Aos seus pés, a carcaça de um pássaro. 

Elísio saiu do carro a tempo de depositar a bílis sobre a terra. A velha permaneceu dentro do carro, às gargalhadas.


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Continua em 14 de janeiro - Sétima e última parte.

Leia também:

A mulher da árvore -Parte 01: O sonho
A mulher da árvore - Parte 2: Flores de Laranjeira
A mulher da árvore - Parte 03: Menininha
A mulher da árvore: Parte 04: A oração:
A mulher da árvore -Parte 05: O pássaro:


Arte: Olga Vilechko - https://drawinks.com/en/masters/olga_morozko/?page=2


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Nádia! De todos os outros ótimos esse foi o melhor! Vou te subornar pelo spoiler! E to pensando em mudar seu codinome para Countess Black Velvet, isso sim...
Alfonsina disse…
Wo Nadia estou completamente absorta na sua história, não vejo a hora de ler o último capítulo!!!
Albir disse…
Zoraya aliviou esta semana, mas não cheguei a sentir abstinência porque Nádia me empurrou de volta aos subterrâneos do medo. É só tomar meus 32 comprimidos que fico bem.

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