o louco e o tempo <<< branco



me lembro

de quando a vi ir para o trabalho
com seu jeito elegante
e andar firme
cabeça ereta
e de como desapareceu
no final da rua

retorno aos meus afazeres
um pequeno conserto aqui
um outro acolá
nada é desperdiçado
preparo uma bela recepção
para quando ela voltar

o encanamento da pia - na cozinha -
pretendo conserta-lo ainda hoje
vejo que preciso também
fazer uma boa limpeza
muitas panelas e pratos se amontoam
a sujeira no chão e as teias nos cantos

ouço na rádio
que milhões de pessoas passam fome
que existem nove guerras em andamento
e que houve mais uma chacina
mas nada disso me importa
continuo meu trabalho

as paredes poderiam receber
uma nova cor
mas antes
preciso encobrir as rachaduras
que elas apresentam
penso
rachaduras-cicatrizes

findo dia
tomo um banho
estou limpo e penteado
e mesmo vestindo roupas puídas
consigo o meu melhor sorriso
- aquele ensaiado exaustivamente - 
sento-me na cadeira da varanda 
e espero pela sua volta

percebo os mesmos olhos - dos mesmos vizinhos-
espiando pelas frestas nas janelas
conheço todos os comentários
mas isso é apenas mais uma coisa
das muitas com as quais não me importo
prefiro fechar meus olhos e sonhar

acordo sentindo frio e me encolho na cadeira de vime
conto as luzes dos postes
espreguiço-me
sei que devo ir para a cama agora
pois amanhã terei outras tarefas
e quero que tudo esteja perfeito
para quando ela voltar



ilustração (lápis em cartolina) por ana betsa


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Comentários

Anônimo disse…
Um belo texto. Quem nunca ficou esperando pelo impossível?
Daniel disse…
Começar a semana lendo você é uma das melhores coisas que podem acontecer. Parabéns!
Claudio Mariotto disse…
A Esperança é a ultima que morre.... aplaudida pela teimosia...
O ensaio na vida a espera do outro...
Márcia disse…
Sem palavras...
Anônimo disse…
Passamos por tempos difíceis e sua poesia nos transporta para outros lugares, outros mundos. O que dizer sobre sua poesia de hoje? "rachaduras-cicatrizes" É é um achado, as entrelinhas e principalmente algumas palavras escolhidas para sinalizar o que realmente aconteceu. Sempre achei que seus poemas davam sinais , deixavam pistas para onde você queria nos levar, depois de ler este passei a ter certeza. Um grande poema que disfarça a espera.
Alcir
Miriam Calfat disse…
Começar a semana com esse belíssimo texto é um privilégio! Parabéns!
Carlos Eduardo disse…
Como pode caber dentro de uma casa, cercada por vizinhos nada amigáveis, tanta esperança. Acho que é isso que nos faz seguir em frente, apedsar de todos os percalços, a esérança de que pode se tornar realidade.
Anônimo disse…
Perfeito Wilson

Elaine Franco
Anônimo disse…
Perfeito Wilson



Elaine Franco
Saleti Bizarria disse…
Lindíssimo texto, você é mesmo um excelente poeta. Acredito que é um dom dado para raras pessoas.
Walter disse…
Bom demais!!! Traz muitas reflexões. Show! Muito obrigado por compartilhar.
Irani Siqueira disse…
Sempre nos surpreendendo, parabéns!
Alessandra Calil disse…
Maravilhoso texto, você sempre nos surpreende.
Parabéns amigo.
Márcio disse…
Surpreendentemente belo!
Felix Chamorro disse…
Perfeito ! Magnífico testo !!
Anônimo disse…
Uma de suas poesias mais sutil. Não sei como você consegue nos levar em sua viagem, me senti assistindo e participando ativamente. Coisa de gente grande, que sabe sobre o que e porque escreve, simples assim.
Alexandre Silva disse…
Belo e formidável... Mostra um dia qualquer, porém de uma forma única!!!!
Olavo Arantes disse…
Gosto de forma suave e da sua provocação que deixa o leitor querendo saber... quem é esta figura misteriosa? Abraço meu Mestre!
Salete disse…
Lindo texto, você tem uma sensibilidade fantástica. Através de seus escritos consegue nos levar junto de você. Lindo demais.
Carla Dias disse…
Ah, Branco...
Esse seu texto me fez pensar profundamente na ausência que não conseguimos permitir que tome conta da realidade. É muita beleza em uma aguda tristeza. Lindo!
Verinha disse…
Bravo!!!
Zoraya Cesar disse…
My Lord, "rachaduras-cicatrizes", q tonteria a minha em ter deixado passar essa!!! Que primor! Que assombrosa a maestria em relatar o abandono e fuga (dela e dele). Chega. Desisto. Não sei mais qual de seus poemas mais me emociona.

E que beleza de desenho da artista! Que venham mais. Amo lápis e esse realmente está lindo!
Albir disse…
Também assim ficamos esperando seus poemas. Sorte que agora podemos visitá-los também na casa da poesia.
Rosana disse…
Lindo texto, sempre a espera de alguém...

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