A máscara da Colombina >>> NÁDIA COLDEBELLA

Assim que pusemos nossos pés no asfalto da rua, Lena e eu não conseguimos mais andar. Ela jogou o tricô fora. Como se nossos corpos houvessem sido tomados por forças ocultas, nos mantivemos parados, silenciosos, de costas para a casa em que vivemos a vida inteira.

Eu bem que gostaria de voltar-me e olhar para ela uma última vez e acho que minha irmãzinha gostaria de fazer o mesmo, mas Lena nada dizia. Ela tremia apenas, talvez pelo frio que inundava a noite. Eu vira, na gaveta da cômoda um casaco lilás de linha, muito bonito, de pontos truncados e confusos para mim, mas que formavam uma bela e delicada trama. A cor cairia muito bem nela, agora que sua pele estava lívida e que alguns traços de desespero pareciam ser o pivô de seu silêncio. Trouxe-a mais junto a mim e apertei sua cintura, tentando, em vão, conduzi-la um passo à frente.

-Não! - Lena olhou-me com os olhos úmidos (o clima desta época do ano em geral machuca os olhos, contribuindo para que as reações naturais de proteção do corpo se manifestem) e tirou minhas mãos de sua cintura com uma certa intempestividade - Não podemos.

Ela separou-se de mim e virou-se, afastando-se em pisadas que, se eu tivesse visto, poderia ter chamado de furiosas. Imaginei-a andando em direção ao portão, talvez colocaria os ouvidos na porta de entrada e tentaria ouvir as batidas e as vozes que tomaram conta da casa e nos expulsaram de lá. Ou, quem sabe, ela tentaria gritar, pedir para que fossem embora - mas esse tipo de atitude não combina com Lena.

(Conheço-a bem. Sempre muito contida e falando baixo, não é dada a grandes rompantes emocionais e vive melhor quando as notícias e os acontecimentos lhe são sussurrados ao ouvido. Já fizemos isso muitas vezes, confesso, quando e eu chegava furtivo em seu quarto, colocava minha mão sobre sua boca e deitava ao seu lado sob as cobertas, naquelas noites infindáveis. Estávamos sós na casa e, embora ninguém pudesse nos ouvir, habituáramos ao sussurro, que eram testemunhados mas não ouvidos pelas paredes que nos circundavam. Agora, nestes dias derradeiros, chego a conclusão de que, apesar do tempo que eu e minha irmã passamos juntos, em nosso casamento silencioso, nunca a conheci verdadeiramente como nos minutos que se seguiram).

Brevemente livre das forças que me prendiam ao chão, voltei meu corpo e vi Lena deitada ao solo, junto ao ralo da calçada. Seu corpo já ganhara as formas de mulher. As suas mãos delicadas tinham os dedos ágeis. Acostumados à arte do tricô, moviam-se na lama e na sujeira, buscando a chave da casa que eu, condoído, jogara fora momentos antes. O ralo era relativamente fundo e, entre as tentativas frustradas, sons de amargura desprendiam-se dos seus lábios arroxeados. Lágrimas desciam-lhe aos olhos - sim, agora eu às podia enxergar - e misturavam-se a poeira da rua.

Depois de um tempo, acho que uns cinco minutos, ela levantou-se e sentou-se na calçada, cotovelos apoiados no joelho e cabeça baixa. Queria ir até ela, mas meus pés permaneciam presos ao chão. Eu conseguia ouvir os soluços e podia ver seu corpo agitando-se, então tinha certeza de que ela agora chorava. Ela ergueu a cabeça e as lágrimas haviam traçado seu próprio caminho sobre a poeira que cobria suas bochechas. (Quando mais novos, da imensa janela de vidro da casa agora abandonada, como dois sacerdotes reclusos, eu, já um homem, e minha irmã, ainda menina, contemplávamos os desfiles de carnaval, as máscaras e maquiagens escondendo os rostos, as colombinas chorando por seus pierrôs. Ali estava, agora, minha irmã, verdadeira Colombina, contemplando-me através de sua máscara de lágrimas e poeira).

Ela virou-se na direção em que jogara o tricô. Seu corpo era todo desejo quando se voltava para ele e agora eu entendia o porque ela tecia tanto. Era para suportar a culpa inevitável que nos condenava a solidão e nos protegia do mundo. Era para que Lena, depois de toda a limpeza que fazíamos na casa (eu bem queria que a faxina nos livrasse de nossa própria imundície), pudesse amarrar na trama tecida, as palavras proibidas ditas a noite em seus sonhos, quando, de olhos fechados, eu as ouvia e permanecia incomodado até a manhã. Era para suportar o sussurro da casa, que tudo vira e ouvira e que agora murmurava, martelava, batia e gritava, nos expulsando dali, nos deixando expostos, à noite e ao mundo que logo saberia de nossos pecados.

Ela voltou-se para mim, a máscara de Colombina sobrepondo-se aos olhos doces que eu conhecia tão bem. Seu corpo retesou-se e seu olhar endureceu. Acho que ela se sentia magoada por não mais tecer seu tricô.

- Vamos Lena. Amanhã quando o banco abrir, compro um novo tricô - eu disse aquilo com autoridade, na esperança de leva-la dali, mas seus olhos flamejaram quando encontraram os meus. Suas mãos nervosas tatearam junto ao solo e removeram, a custa das unhas sangrarem, uma grande pedra da rua. Ela levantou-se, ereta, impassível e altiva como uma rainha. Chegou perto e procurei enleá-la pela pela cintura novamente, mas ela gentilmente se esquivou. Acariciou meu rosto, naquele gesto submisso tão meu conhecido, que me fazia querer permanecer no quarto dela todas as noites. Depois colocou uma das mãos sobre o ventre proeminente.

- Você não pode mais. - Ela sussurrou, lúgubre, no meu ouvido, arrepiando-me os pelos da nuca e do braço. Colei meu rosto ao dela. A ardência em seus olhos havia passado, mas pude ver a luta que ela enfrentava. (Lena surpreendia-me, às vezes, mas nunca como nessa noite. Sempre cordata e tranquila, aquele furor era novo para mim).

Ela ergueu a pedra sobre minha cabeça e a desferiu com força, uma duas três vezes, sobre minha fronte, o que eu debilmente aceitei, sem reagir. Ao cair, ainda pude contemplar a porta da casa que agora se abria, permitindo que nossos segredos sussurrados fossem alardeados em voz alta.

Eu, porém, logo fecharia os olhos para sempre. Lena estaria deitada na calçada como um pobre-diabo, implorando aos céus a chave para entrar.


Dedico esse breve conto, inspirado em Cortázar, a todos os hipócritas que, na sua suposta sabedoria e arrogância, condenaram uma menininha ao inferno e à culpa pela terrível vitimização que sofreu.

Ilustração: https://www.deviantart.com/carnegriff/art/Mardy-work-in-progress-II-390927878.

Comentários

Albir disse…
Muito bom, Nádia!
Como Cortázar você descreve com fidelidade a angústia destes tempos.
Zoraya Cesar disse…
espetáculo, Nádia! Rascante e definitiva. Esse final, entao, das chaves do céu... impagável
Carla Dias disse…
Nádia, que texto forte e repleto de importâncias, de desvelos necessários e julgamentos desnecessários e cruéis.

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