A CARTA >> Fred Fogaça




Quase não publiquei hoje, estive sem ideias novas nessa quarentena que é sempre a mesma. Mas hoje, ou melhor, agora, relembrei um texto muito catártico que escrevi a alguns anos atrás. Acho ele bastante pesado ainda, porque explora esquinas de meus traumas, mas relê-lo, tal como o processo da escrita, é muito importante pra mim.

-

Algum lugar,
Algum dia, mês e ano. Nove da noite.


Mãe: me perdoe.


Mas não me sentia mais seguro convivendo com as evidências de quem eu era. A vida tinha se tornado uma empresa dispendiosa e dramática, que me era penosa desde todas as manhãs até os anoiteceres. Há quanto tempo já não desapareci, mãe? Demorei tanto p'ra conseguir mendigar palavras o bastante para compor o número digno de uma carta. Não tenho falado muito. Outrora eu tinha histórias, casos de todos os tipos e gostos, outrora opinava dos times que nunca assistia os jogos e falava por horas dos filmes que não tinha visto. Outrora, discutia profundíssimos assuntos com a pura arte da retórica. Mas hoje, mãe, ah... como estive sem discursos. Como assisti de olhos frios o horror se precipitando à minha vista tantas vezes quanto se tornaram incontáveis pra mim e como estive relapso às importâncias ordinárias da minha condição biológica no mundo. Sem contar todas aquelas problemáticas insistências tuas, mas que se tornaram dias despretensiosos como toda a inocência acaba por ir-a-ser. Mas vai se contentar em saber, em compensação, que não me dói nada e não tenho perdido peso. Que tenho escovado bem os dentes e ido à médicos constantemente.


Mas não ando trabalhando, mãe, e por isso me desgasto largamente pelas lacunas compridíssimas das horas. Há tempos meu dinheiro é só o que toco com as pontas dos dedos no bolso da calça. Há tempos, mãe, que não encontro nada lá. Vivo de favores. Até que ninguém queira mais comprar meu esforço ou ele já não valha tanto quanto os débitos, então eu fujo sem saber pra onde por que não sei mais de mapas, coordenadas, nem nomes conhecidos. Não me preocupo. Mas por muitas noites perdi meu sono pensando em números. Qual educação me deram que eram tão importantes pra mim? Não foram poucas as vezes que você me censurou e em reflexo dos seus pesares, eu me censurei também. Precisava me livrar disso, me livrei então da censura me expondo à falta de opções.


Mas não ter escolhas curou minha ansiedade, mãe. Precisava também me livrar dela. Me lembro de certa vez, por exemplo, de um sonho em qu'eu perdurava pela dobra dos dias em programas boemíssimos e em desfavor dos meus costumes, eu dançava e cantava e bebia... me esforçava à exaustão pra manter longínquo o que não se limitasse àquela instância de tempo. Mas no previsto inevitável da noite, eu me arrastava pelas bordas do seu fim e a esticava. E esticava. Esticava. Estes eram meus pesadelos, mãe! Dessas coisas que terminam! Que se iniciam sempre reféns do próprio fim. Quão infeliz eram os dias em qu'eu tinha expectativas. Mas não se preocupe, mãe, se caso te passe pela cabeça que me sinta perdido: só está perdido quem sabe onde desejar estar e eu, mãe, não tenho mais pra onde voltar. A rosa dos ventos foi só mais uma a murchar pro vazio do infinito.


Também não tenho, em uma desonra cruel aos teus costumes preciosíssimos, arrumado a cama. Há muitas e muitas noites dormidas que não tenho dobrado sistematicamente os cobertores e os lençóis, resguardando-os à espera da próxima sesta, e arrumando a cama num esmero de não permitir que os tecidos expusessem vincos, numa estética amnente de usos passados. Não tenho também, mãe, me furtado de esquecer a toalha em cima da cama. Se alegre, pelo menos, por te-la trocado sempre: de quando em quando a descarto e compro uma nova. 


Eu tenho descartado muitas coisas, mãe, mas não tenho levado lixo pra fora.


Andei descartando muito mais do que achava que tinha na vida, aliás. Muito mais do que a nossa visão proletária do mundo nos dava a luz de saber da posse. Esse processo de vir-a-ser da auto-consciência foi uma das minhas mortes mais horríveis. Eu, então, um ser disforme, mero espaço negativo, assim, fechado pr'o mundo e deixado tão exposto a mim mesmo, que perigo eu não corri durante anos? Tivesse me colocado em contato com as outras pessoas. As outras que, aos meus olhares inocentes de conhecimento foram sempre cheias de convicção, de constância... tão consolidadas. Mas... exposto à contemplação do vazio que era eu mesmo, expostos aos livros e a teorias e a imaginação e a toda essa sorte de (de) drogas abstratas e perigosíssimas que absorvem toda a auto-confiança, sem ao menos algumas interfaces de alívio com a sociedade, alguns momentos de lucidez ignorante... que esperança eu tinha, mãe, de me "tornar alguém"?


Por isso fugi. 
Por que quando abandonei tudo, mãe, já tinha cedido à tentação da serpente.


Quando tudo era só uma impressão impalpável, quando nada se estabilizava em sua existência, como uma maldição de Sartre que perseguia minhas convicções mais fortes, quando as paredes do buraco que já tinha caído me avisaram o seu fundo e se tornaram mármores e eu me empurrei pelo limites da minha insignificância no espaço saudando o desespero por uma justificativa qualquer, como um cachorro magro que mendiga de porta em porta por restos de comida sem se dispensar de saber da violência com que será brindado esses favores miseráveis. Quando desejei a dor da chuva no corpo nu de roupas e forças, só pra conseguir voltar a conceber uma direção de origem. Era por que todas aquelas tuas verdades frias, minhas estruturas mais rigorosas, amarguravam a tenacidade das minhas razões e eu morria, mãe. 


Eu morria!


Todos os dias pela manhã, junto ao cartão ponto de entrada também eu morria, mãe. Junto às noites de comer fora, de ficar em casa, de encontrar amigos e todas as vezes em que descansava na esperança tão volátil do fim do expediente, na felicidade que só valia entra a iminência das cinco, ir embora e nada mais e morria de novo em casa, até o dia seguinte. 


Mas não dê importância aos pensamentos que te surgem, porque sei ser muita a tua preocupação de que eu não vá pro inferno e te asseguro que lá, minha presença nunca será bem-vinda: imáculo à força da vida como um beneditino, tão próximo da morte como da vida, entregue ao estado mais nobre da metáfora e mesmo a pausa dessas desgraças não era alivio porque tudo soava culposo... t.u.d.o. com meu patente esforço para te agradar. 


Mas o demônio, mãe, parafraseando alguém, mora nos porquês.


Com todo o amor,
Seu filho.


-

Obs.: bom relembrar que essa e todas as fotos que uso nas minhas postagens são minhas e estão disponíveis no meu Instagram: @freedfogaca.

Comentários

Sandra Modesto disse…
Nossa, Fred, eu chorei. Ainda bem que vc publicou. Grande beijo!
Carla Dias disse…
Das cartas pungentes, de render-se à vida, apesar de tudo que tenta impedi-la de acontecer na pujança que a ela cabe.
Zoraya Cesar disse…
A rosa dos ventos foi só mais uma a murchar pro vazio do infinito.

Queria ter lido 2 vezes, mas, covarde que sou, não consegui. Ainda bem q li com atenção profunda, pq vai demorar até eu ter coragem de ler de novo.

Postagens mais visitadas