FIDELISSIMAMENTE >> Albir José Inácio da Silva


Fidélio empunhava o rastelo para o alto e bradava palavras de ordem ao lado de outros camponeses fiéis ao Suserano. Enxadas, pás, facões e vassouras eram as armas, que coisas mais perigosas não lhes eram permitidas.

A cavalaria que cercava o castelo já ameaçou fazer carga duas vezes, mas foi contida por gritos da torre.

Havia boatos de que o herdeiro poderia estar a ferros ou até morto dentro do castelo. Mesmo sem comunicados oficiais, todos sabiam da disputa envolvendo nobres e famílias.  Mas o povo, comandado por Fidélio, não pretendia deixar barato.

Os soldados, com armaduras de ferro ao sol do meio-dia, ansiavam por espetar umas lanças nas barrigas daqueles baderneiros, mas Fidélio estava disposto a morrer pelo seu senhor. E ele foi às lágrimas quando Clemente, o Duro assomou à janela para agradecer a dedicação dos bravos camponeses. Que agora já podiam descansar em suas casas porque tudo estava resolvido.

A solução da corte passava como sempre por redistribuição de terras e indenizações para nobres descontentes e o consequente aumento de impostos e confisco de terras entre os camponeses. Na manhã seguinte um édito foi lido pelo arauto e afixado nas portas do palácio e da igreja.

Por exigência do Bispo Corregedor do Santo Ofício e Ministro da Família, da Moral e dos Bons Costumes, a partir daquele momento só poderiam manter suas glebas os camponeses casados de acordo com a lei divina.

- O estado civil dessa malta de pecadores é a putaria!  – esbravejava vermelho o sacerdote .

Uma fila de noivos formou-se durante dias na porta da igreja, apesar das taxas matrimoniais quintuplicadas pela mão invisível do mercado, ou seja, aumento da demanda.

Não foi difícil para Fidélio conseguir o sim de uma camponesinha magrela e apática, órfã de pai e mãe doente, para quem ele já esticava uns olhares. Foi suficiente o argumento de ter um pedacinho de terra pra plantar umas batatas. Benta não tinha sonhos sobre amor e casamento, mas sabia o que era fome.

Nem todas as noivas mereciam a atenção dos soldados do Duque, mas Benta, talvez por seu jeitinho pueril e seu rosto delicado, foi logo percebida pelo capitão da guarda como capaz de atender às exigências meio pedófilas de Sua Alteza.

Foi assim que, celebrado o casamento que durou dez minutos, o padre os despachou com água benta e o capitão da guarda lhes entregou a notificação.

Não se podia dizer que Fidélio estava confortável com a tradição das primícias. Mas ele sabia que os bens e a vida dos vassalos pertenciam ao suserano. Muitos se rebelaram, fugiram ou perderam suas cabeças. Mas Fidélio não questionaria jamais os direitos divinos do seu senhor.

Quem não gostou da ideia foi Benta, provavelmente por sua imaturidade, mas Fidélio mandou que se calasse, era a tradição.  

Depois do pato com batatas, do choro e da bênção da mãe doente, Benta foi levada pelo próprio marido à entrada de serviço do castelo.

                                                                                      ***

Fídélio ganhou uma gleba seca, pedregosa e inclinada, mas não reclamou. Plantou batatas e criou patos com alegria e esperança. Benta participava do plantio e da criação, mas não da alegria e da esperança.

Como tudo que está mais ou menos pode piorar, uma notificação do Tesouro veio sacudir a frágil harmonia daquela pobreza conformada. O ministro ameaçava confiscar terra e produção por sonegação de impostos.

(Continua em 10/02/2020)

Comentários

branco disse…
pensando....pensando....está muito bom e não encontro as palavras que façam jus....pensando
Zoraya Cesar disse…
Ai, Albir! Vc não pode mais falar das minhas maldades!!!
Albir disse…
Obrigado, Lord, por pensar comigo.

Zoraya, tá cada dia mais difícil fugir da maldade. Agora entendo você.

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