COMO POSSO AJUDÁ-LO? >> Carla Dias >>


Apenas uma pessoa. Ninguém de importância que não para os seus. Não nasceu com talento para mudar o mundo ao ter uma ideia genial. Trazer à vida uma invenção de deixar a muitos boquiabertos. Desde sempre, soube que não seria desses.

Apenas uma pessoa, detentora de manias diversas, desejos tantos, alegrias modestas e tristezas aos montes, que adora uma melancolia, então aceita as de todas as laias.  Porém, não é dado à espetaculosidade dos dramas. É melancolia para ruminação, quase silente.

Pensou até que se tornaria artista: escultor. Artista: músico. Artista: ator, e dos protagonistas. São devaneios que duraram menos do que ele imaginou que durariam, mas pelos quais nutriu verdadeiro afeto, durante a brevidade de cada um deles. Contudo, não se apega ao que não lhe cabe, o que tira o sofrimento dessa aceitação de falta de talento para a arte.

Gosta de resolver problemas. De somar isso com aquilo, comparar situações, planejar saídas. É apegado às saídas mais complicadas, porque aprecia um desafio que lhe atine a mente. Dá-se muito bem com o que reluta em se mostrar completamente, mas que ele acaba por compreender, depois de dedicada observação.

Quase tudo o que o fascina exige certa solidão. Feito essa tarde, nesta varanda, décimo e muitos andares de prédio que abriga o apartamento que é seu universo. Sentado em uma poltrona confortável, uma pequena mesa ao lado: um computador, um telefone, um bloco de notas e um copo de água, porque ali não é lugar para os adoráveis etílicos. 

Pensa no tanto de mundo que há para além do que seu olhar pode alcançar. No tanto de mundo que muitos jamais serão capazes de perceber. A previsão é de considerável queda de temperatura, o que, para ele, vem com certo deleite, que não é apreciador apegado ao calor. A vista se encaixa muito bem na sua necessidade de espaço a perder de vista, o que sempre o inspira a fazer o melhor.

Apenas uma pessoa, das que prefere não causar alarde, não provocar rompantes. Escolheu passar despercebido. Não carece de reconhecimento. Faz questão de oferecer o mínimo de si ao outro, que, por sorte, aguce o seu interesse. Garante que seja um mínimo que corresponda à verdade de quem ele é. 

O mundo segue mudando. Acha curioso como as pessoas creditam ao mundo aquilo que elas confabulam e provocam, como se ele fosse uma versão delas. O ser humano segue ao toque das mudanças. Nem sempre para melhor, mas quem é ele para questionar a evolução? 

Apenas uma pessoa, entre todas as outras pessoas. Alguém que aprecia a solidão da sua profissão, ainda que ela seja rica em enredo. 

A noite se apropria do tempo. É da noite, esbalda-se nela. Assim como a solidão daqueles que não a suportam. 

Pensou que se tornaria um artista, mas se tornou outra coisa. O telefone toca. Ele respira fundo, olhos fechados, então atende ao telefone. Não tira os olhos do mundo a sua frente, que deve ter muito de vida que ele desconhece. O homem, do outro lado da linha, está tão nervoso. Não há identidade e ele nunca se sentiu curioso sobre eles, despidos dos problemas que desejam resolver. 

- Como posso ajudá-lo?

Em tempo em que escutar se tornou raro; em que realmente escutar, de compreender a questão, tornou-se quase impossível, ali está ele: um ouvinte. Não é profissão nova, que alguém sempre pagou, de alguma forma – com amor, interesse, dinheiro, mesquinharias... – por uma possível solução das suas angústias.  O que acontece, neste atualmente, é que o escutar e compreender, e ser capaz de ajudar ao outro a encontrar uma solução, tornou-se impossível para a maioria. A manipulação dos políticos já não faz mais efeito. Líderes religiosos perderam seu poder de persuasão. Então, há ele, um guia para que o agoniado enxergue o problema e chegue à melhor solução. E quando não há solução, que ele aceite a impotência e a encare da melhor forma possível.

O mundo mudou. As pessoas o mudaram. As profissões andam mais peculiares do que nunca. Ainda assim, elas apenas refletem o que as pessoas buscam, não sabem explicar, tampouco se lidariam bem com a descoberta.

Feito ele, ninguém de importância a qual alguém possa dar nome. Inventou nada de inovador, apenas se apossou de uma necessidade e a transformou na sua prestação de serviços. É dos melhores inspiradores de soluções que já chegaram ao mundo. Tentou ser cientista, mas não funcionou. Tentou ser artista, mas não deu certo.

Tornou-se o que outros precisavam que ele se tornasse.

Imagem: The Flyer Man, do livro Wonderful Balloon Ascents. Domínio público.

carladias.com


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Primoroso, Carla! Mais um personagem das suas profissões incomuns! Adoro. Hahaha, e ele nem percebeu que, de alguma forma, ele se tornou o artista que queria ser. (agora, por outro lado, meio assustador isso, né? a gente se transforma não no que quer, mas no que o mundo precisa. Muito assustador)
Sandra Modesto disse…
Sensacional, Carla. Profundo. Uma reflexão narrada poeticamente.
Albir disse…
Muito bom! Antes das tragédias, fecham-se primeiro os ouvidos.
Carla Dias disse…
Zoraya, essa coisa de transformar o mercado de trabalho, de acordo com a necessidade, é assustador mesmo. Acho que acabamos por nos acomodar com o que era possível de se resolver sem a criação de departamentos, regras e por aí vai.

Obrigada, Sandra!

É isso, Albir... É isso.

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