500 TONS DE CINZA >> Nádia Coldebella


- Ana, acorda. 

Ana, que dormira toda encolhida, esticou-se. Olhou em volta e percebeu que a voz que a chamara não vinha de lugar nenhum. Vinha da cabeça dela. Sinto-me bem, pensou, e no segundo seguinte, a cabeça pesou. Uma nuvem trevosa tomou conta dos seus sentidos. Ela ignorou e considerou se deveria levantar-se da cama. 

- Será que é hoje o dia em que vou morrer?

Queria ficar ali deitada. Escondida embaixo das cobertas. Não podia, tinha que trabalhar. Com muito custo, levantou-se e sentou-se na beirada da cama. Permaneceu assim por alguns minutos, mente confusa tentando refletir qual seria o próximo passo. Assim como ignorou a névoa sobre seus sentidos, tentou ignorar as dores nas articulações que suplicavam para que voltasse para cama. 

O cheiro do café, vindo de algum apartamento próximo ao seu, infestou seu quarto, mas já estava longe o tempo em que aquele cheiro deixava sua boca cheia de água. Agora ela nem mesmo entendia como algum dia gostou de café. Mas é assim mesmo, pensou, algumas coisas são estranhas. 

Pôs-se de pé com um custo mais alto ainda. Duas lágrimas vieram-lhe aos olhos e ela lamentou-se internamente pela sua existência miserável e pelas lágrimas sem sentido. Andou até a janela e afastou levemente as cortinas. Era primavera, as crianças, as mães e os cachorros andavam pela rua. Os passarinhos cantavam agudamente nas árvores próximas. Os chilreados irritavam seus ouvidos sensíveis e inscreviam nela um desejo profundo, quase concreto, de que os pássaros explodissem. Ela não via graça nas crianças, nas mães, nos cachorros e muito menos naquelas aves. Talvez porque houvesse uma vidraça opaca em frente aos seus olhos, que pintava o mundo em tons e sobretons de cinza. 

- Quinhentos tons de cinza - ela riu amarga, lembrando do namorado que, cansado de acordar pela manhã e encontrar um cadáver, havia ido embora. Ana não lembrava se algum dia chegou a amá-lo de verdade, mas, quando ele se foi, uma forte correnteza a enterrou ainda mais fundo no poço de areia movediça em que caíra há algum tempo. 

- Será que alguém se lembrará de mim? - a breve esperança se revelou uma gota fugaz de prazer num oceano morno e cinza de coisas que ela mesmo não se recordava: frio e calor, alegria e encantamento, cheiro do pão feito em casa, carinho da mãe, prazer no sexo. A conclusão óbvia veio em seguida.

 Arte: Nádia Coldebella
Arte: Nádia Coldebella

- É melhor eu morrer do que ficar viva - e logo ela se viu fragmentada em um milhão de partes e toda a mornidão desapareceu por um segundo, substituída por medo, culpa, desejo e angústia. Todos misturados, gritando dor. Aguda. Insuportável. 

Escutou alguém chamando. Ela olhou em volta e não viu nada. A voz não vinha de dentro da cabeça, vinha de algum lugar de fora. Ela não identificava de onde, mas a ouvia repetir insistentemente: 

- Ana, a corda! 



 A depressão é uma doença psiquiátrica crônica, que gera perda de ânimo e de interesse pelas coisas cotidianas, tristeza profunda, oscilação de humor e dor intensa e as vezes insuportável pela perda de significado da própria existência. Sintomas físicos também aparecem, como dores e tensão pelo corpo, além de uma série de outros problemas. Pensamentos sobre suicídio podem estar presentes, podendo a pessoa planejar e executar suas intenções. Pessoas que se sentem assim devem procurar urgentemente a ajuda de um profissional da saúde.

Comentários

Sandra Modesto disse…
Lindo texto, Nádia. Uma análise em prosa sobre um assunto que assusta, que é sério e precisa ser encarado. Depressão é uma doença que mata. A Ana não é só uma. Há quinhentos tons dela.
Charlanne disse…
Nadia parabéns pelo texto delicado e pertinente para abordar essa tématica.
Unknown disse…
Parabéns Nádia pelo novo projeto!!! Amei o texto, me senti envolvida na breve história de Ana. Bela reflexão sobre essa temática.
Heloisa disse…
Excelente reflexão, Nadia.

Mostra com sutileza o modo como as pessoas podem chegar a um pensamento suicida e até mesmo a tomar uma decisão.
É um jeito perspicaz de demonstrar que devemos nos conscientizar sobre a depressão.
Luiz Silva disse…
Um tema que pouco se fala escrito assim dessa forma. Maravilhoso texto!
Clicie disse…
Muito bom Nadia!!! Parabéns por escrever de forma tao real sobre um tema tao atual. Muitas e muitas Anas precisando ajuda por ai...
Karina Lopes disse…
Parabéns, excelente texto, envolve o leitor!!!
Jacqueline presa disse…
Lindo texto Nádia! Parabéns!
Unknown disse…
Parabéns Nádia uma crônica que relata muitas das realidades atuais.
Anônimo disse…
Muito bom! Texto curto, direto e que diz tanto...
Anônimo disse…
#nadiacoldebellaarraza 👏👏👏👏👏👏
Unknown disse…
Lindo texto! De uma simplicidade e sensibilidade que envolve o leitor!
Sandra Benetti disse…
Parabéns Nadia.... texto interessante que prende o leitor.... tema complicado esse... Dificil para mim imaginar o que passa na cabeça de uma pessoa com depressão, mas o texto nos mostra isso de uma forma tão simples e assustadora.... Parabéns Novamente
Solário disse…
Adorei! texto real, forte e direto. Parabens Nádia!
Zoraya Cesar disse…
Final primoroso, Nádia! E o "cansado de acordar junto a um cadáver" foi sensacional.
Estreia veludosa. Nada a estranhar.
Felicíssima de te ver aqui, felicíssima de ter intermediado, orgulhosíssima da minha amiga.
Ei, vou pedir uma arte sua para meus contos!
Nadia Coldebella disse…
Agradeço o carinho de todos nessa estreia!

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