O PORTEIRO >> Zoraya Cesar

O prédio era antigo, estilo art déco, grandioso, decadente, e Valdo se apaixonou por ele no instante que subiu o primeiro degrau. Sentiu como se nunca mais fosse sair dali. Quem o recebeu foi o zelador, a quem iria substituir.

— E aí, tudo bem? Preparado pra pegar no batente? — perguntou o chefe dos porteiros, olhando-o de alto a baixo. Valdo era pintosão, cara de paraíba macho, daqueles que falam pouco, forte e caladão. Era o tipo certo, pensou. — Entende de encanamento, serviço de pedreiro, essas coisas? Esse prédio é velho, vive dando encrenca. 

— Sei sim senhor, respondeu Valdo, sem mentir, olhando embasbacado a beleza em volta. 

Poucos dias depois, antes de se despedir, o zelador segurou no braço de Valdo, olhou bem pra ele e sussurrou: o segredo para ficar no emprego é a síndica, rapaz, ela tem de gostar de você, entendeu? Ela tem de gostar de você! 

Valdo estranhou, é claro que a síndica tinha de gostar dele, era a patroa! E foi tratar da vida. Já conhecia todos os moradores, menos ela. E numa tarde de sábado, morna e mofenta, a luz vermelha do interfone começa a piscar. Era a síndica. Valdo fica nervoso. Será que tinha feito algo errado? 

Uma voz roufenha, saída de uma garganta acostumada ao cigarro, dá-lhe boa tarde e pede para ele subir um instantinho, por favor. Valdo abandona a portaria e corre para atender ao chamado, o primeiro de sua verdadeira patroa. 

Ele encontra a porta semiaberta e para, confuso.

— Entra, diz a voz, que fez o coração de Valdo bater tão forte que ele teve medo de vê-lo saltando pela boca. A sala, ampla, quente, pesada, cheia de brocados e veludos encheu-lhe os olhos e o coração. Sentiu-se bem ali, como se estivesse em seu próprio corpo. Mas nada era tão lindo quanto a mulher recostada em um dos sofás. 

Ela tinha os peitos fartos, impacientes por saltar do decote ousado, um corpo rechonchudo apertado num vestido de oncinha, as pernas roliças de joelhos redondos cruzadas numa pose que Valdo achou a coisa mais sexy do mundo. Assim como as unhas compridas e vermelhas, o grande anel de pedra, os cabelos pretos de tinta soltos pelos ombros, a pintura carregada dos olhos e da boca. Uma perua sessentona, ainda bonita, exuberante, excessiva, que encheu Valdo com sua presença. Ele teve ímpetos de se ajoelhar ali mesmo, beijar aqueles joelhos, apertar aquele corpo cheio de carne e vida. Essa é uma mulher de verdade, gritou sua alma. 

— Por favor, veja se o encanamento do banheiro está em ordem, sinto cheiro de gás. 

Valdo foi, trêmulo. Examinou todo o encanamento, estava tudo em ordem, disse. Ela sorriu e dispensou-o. 

O dia seguinte, ele passou consumindo-se de desejo, de ansiedade, rezando para que a Síndica, a Patroa, o chamasse para qualquer serviço, qualquer um, que lhe permitisse olhar para ela, vê-la por uns instantes, nem que fosse faxinar a casa, limpar os vasos, beijar-lhe os pés. 

Nessa noite, a luz vermelha do interfone pisca novamente. Ele nem atende, sobe correndo os dez andares e entra esbaforido no apartamento. O que será que ela queria? Ele faria qualquer coisa. 

A porta estava escandalosamente aberta. Ele foi entrando, procurando-a, ansioso. Valdo achava o apartamento lindo. Não mais lindo, no entanto, que a dona de tudo aquilo, que estava no quarto, encostada no espaldar de uma cama enorme, vestida com um roupão frouxo, que deixava à mostra pedaços de carne branca de aparência macia. 

— O encanamento, roufenhou a voz, estou sentindo cheiro de gás. 

Valdo foi ao banheiro, verificou o gás e os encanamentos, tudo em ordem. Voltando ao quarto, deu conta do serviço, e, sem pensar em nada, avançou naquela carne, naquela boca vermelha, naquela brancura toda. 

Ela não disse nada, pegou o cigarro, o fósforo, e sorriu. 

Noite após noite, durante alguns meses, aquela cena se repetiu, até que, de repente, a luz do interfone deixou de piscar. Ele ficou alarmado, teria acontecido alguma coisa? Ligou. A voz o atendeu e, rispidamente, disse que só a procurasse quando chamado. 

Ele não se sentiu humilhado, mas desesperado. É claro que ela era a Patroa, quem mandava era ela, e ele obedeceria a tudo o que ela dissesse, faria tudo o que ela quisesse, o problema era como viver sem ela, sem sua boca faminta, suas curvas, seus peitos grandes e generosos? 

Desde então ele não dormiu mais. Virou um sonâmbulo em constante estado de alerta, não sentia sono, cansaço, nada, na verdade, parecia estar ligado numa tomada cuja corrente elétrica jamais oscilava. 

Somente após três semanas ela o chamou de novo. Dessa vez, ele subiu calmamente. Encontrou a porta, como sempre, aberta. Encaminhou-se para o quarto, e lá, mais uma vez, a voz de cigarro que dobrava Valdo de joelhos disse que o encanamento devia estar com problemas, pois sentia cheiro de gás. 

Repetindo a cena tantas vezes ensaiada, ele vistoriou encanamentos e aquecedores, dessa vez abrindo-os todos. O barulho do gás escapando parecia o de uma locomotiva a vapor que ainda estava distante da estação. Não daria para ouvir do quarto. Ele voltou, e, mais uma vez, deu conta do serviço. 

Ao final, ela pegou o maço de cigarros e o fósforo. Valdo sorriu. 


P.S.: Esta crônica integra o projeto “CRÔNICA DE UM ONTEM” e foi publicada originalmente no Crônica do Dia, em 14/09/2012.

Comentários

Anônimo disse…
Muito comum! Muitas já pagaram com a vida por atrair um homem e depois dispensá-lo! Complicado isso!

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