a fábrica >> branco

ele chegou pela madrugada/manhã
sentou-se à beira da calçada
e lembrou-se de sua vida na cidade grande
nos dias perdidos
nos amores perdidos
no emprego perdido
- paletó
gravata
mesa de mogno
cadeira de couro -
a loucura da cidade grande
e a pressa da cidade grande
a urgência da cidade grande
e a impessoalidade

ele estava triste
mas pensou na noite bem dormida
em uma casinha amarela recém-comprada
e no jardim
- que mais tarde seria cuidado -
e no acordar
no dia ainda escuro
esses eram os motivos
de ele estar sentado à beira da calçada
em uma rua de terra batida

o sol nasceu enquanto se  espreguiçava preguiçoso
e com o sol vieram as vozes
transformadas em vultos
e depois em pessoas

o velho que dividia sua sabedoria
- de como produzir mais fios em menos tempo -
com um jovem que o olhava admirado
foi o primeiro a sorrir e desejar bom dia
- foi imediatamente imitado pelo garoto -
o homem maduro e com rosto tranquilo
também sorriu ao cumprimenta-lo
esse homem era seguido por uma senhora
que falava às outras mulheres
- que a olhavam com respeito -
sobre como deixar as peças de fazenda mais brancas
- ele sorriu -
também passou um casal
conversavam apenas
conversa simples conversa feliz
passaram muitas outras pessoas
e muitos bons dias foram ditos


um pequeno espaço de tempo


e três jovens apressadas
seus passos ligeiros não as impediam
de tagarelar em voz baixa
e darem risadinhas abafadas
enquanto olhavam disfarçadamente
para o jovem alto que caminhava pela calçada oposta
ele ficou enjoado com o cheiro forte e doce do perfume das moças
e ficou surpreso com os vestidos floridos e de elegante simplicidade
percebeu que essas pessoas entravam pelo grande portão preto
- que as engoliam -
e acima do portão preto
uma placa onde estava escrito
a fabrica

portões fechados ruas vazias
exceto pelas poucas crianças que brincavam com bolinhas de vidro
ele achou divertido - mesmo sem entender  -
foi ao bar
isolou-se em um canto
e novamente lembrou-se do que tinha deixado para trás
pagou a conta
saiu do bar
e ocupou o restante do dia
abrindo caixas e arrumando sua nova casa
deu uma olhada no jardinzinho
e sentiu vontade de mexer na terra
quem sabe um dia ainda faria isso

a tarde se fazendo noite
e a curiosidade o levou de volta à beira da calçada
olhou para o portão preto que se abria
vomitando homens e mulheres
recebeu muitos boas noites
de rostos masculinos cansados
de rostos femininos cansados
os velhos agora em sábio silêncio
pessoas sozinhas
casais
e finalmente as três jovens
as flores do vestido não pareciam tão vivas
mesmo as jovens
não pareciam tão jovens
e o cheiro de suor
passaram todos
transformando-se em vultos
em vozes
em silêncio

apenas ele deixou-se ficar
sentado à beira da calçada em uma rua de terra batida


um grande espaço de tempo


e ele ainda sentado
- estático -
quando pareceu ouvir vozes distantes
não apenas vozes
- um violão -
uma musica talvez
pensou em estresse ou paracusia
mas tinha certeza de ter ouvido vozes
entre elas a do homem maduro e rosto tranquilo
essa voz parecia feliz
ouviu risadas
-masculinas e femininas -
ouviu crianças
sentiu o cheiro
na verdade sentiu todos os cheiros da noite
mas um se sobrepunha aos demais
um cheiro forte e doce
e assim
embriagado pela vida
ele sorriu para si mesmo
e depois chorou
por um motivo ainda desconhecido para ele













Comentários

Carla Dias disse…
Que rico esse relatório de um dia de alguém observando outros. Muito bacana.
Anônimo disse…
Fantástico. Incrível como conseguimos nos colocar na cena devido a riqueza de detalhes.
Parabéns
Rafa Calil disse…
Fiquei emocionada pelo lirismo da poesia
Anônimo disse…
Estou acompanhando suas publicações nesta página e quando penso que não poderia ser acrescentado mais nada uma nova poesia me mostra que estou errado. O senhor tem o dom de nos colocar dentro de seus poemas, eu fico radiante, pensativo, triste com os personagens, me coloco dentro de cada cena ombro a ombro com eles. Brilhante.
Ana Paula disse…
E eu estava nessa calçada... DEMAIS. Lindo.
Felix disse…
Cara, voce é fora de série, bom demais.
Nilson Bispo disse…

Branco realmente leva o leitor a viajar na poesia dele.
Para quem conhece o dia a dia de uma fábrica, vibra lendo a poesia.
Obrigado por postar.
Zoraya Cesar disse…
branco, isso foi lindo demais! o ponto de vista de seu observador foi tão delicado, sem julgamentos, apenas sentidos. E com um final tão feliz! Encheu de alegria meu momento. Obrigada!
Albir disse…
A embriaguez pela vida frequentemente provoca lágrimas inexplicáveis.

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