UM CADERNO AZUL >> Sergio Geia
Em Foe
(Foe, J.M. Coetzee, 1ª ed., São
Paulo, Companhia das Letras, 2016), Susan Barton, náufraga, vivendo numa ilha
deserta, na companhia de Cruso e Sexta-feira, num certo momento de sua monótona
e triste vida, aconselha Cruso a fazer algum tipo de registro daqueles anos de
naufrágio na ilha:
“O
senhor não lamentaria não poder levar consigo algum registro dos seus anos de
naufrágio, de forma que o que passou não desapareça da memória? E se nunca
formos salvos, mas perecermos um a um, como pode acontecer, não gostaria de
deixar um registro, de forma que outros viajantes que porventura venham dar
aqui, sejam quem forem, possam ler e saber de nós e talvez derramar uma
lágrima?”
Cruso não era de registrar nada, mas a
passagem me fez lembrar que há muitos anos eu tinha o costume de registrar num
caderno tudo o que lia, e, principalmente, alguma coisa que me chamava a
atenção. Normalmente, anotava o título do livro, a data em que terminei a
leitura, um resumo da história (quando não tinha preguiça), as expressões que
eu não conhecia, frases que me alegravam ou me diziam algo. O problema era
descobrir onde estaria guardado (se é que estaria guardado em algum lugar; se é
que ainda existia) o tal do caderno.
Só sei que fui à luta; achei que
encontrá-lo depois de tanto tempo me faria bem. Ocorre que depois de uma
separação conjugal e de mudança de casa, a tarefa seria no mínimo inglória e
fadada ao mais absoluto fracasso. Mas sabe que não? Depois de uma tarde cavoucando
as entranhas dos meus armários, caixas e estantes, encontrei o empoeirado
caderno azul dentro de uma caixa com alguns pertences que até hoje não decidi
que destino dar.
De cara, me surpreendi com o escrito da
primeira página. Nem lembrava mais que um dia tinha dado vida àquelas coisas. É
de 27 de fevereiro de 2004:
“A
quem possa interessar. Comprei para anotações. Aprende-se muito com a boa
leitura. Começo com Memorial de Ayres do formidável Machado de Assis. Não que
seja meu primeiro livro. Já li outros, mas só agora resolvi anotar os
vocábulos, anedotas, fatos pitorescos, adjetivos, substantivos e outras coisas que
me deram prazer aos olhos. Resolvi também anotar um breve resumo das obras. Com
o tempo e a fraqueza da memória, a gente até se esquece que leu esse ou aquele
livro. Espero que meus filhos gostem de ler e se extasiem com a boa trama. A
leitura enriquece, ensina, emociona. Um bom livro tem o poder de nos revelar
mundos desconhecidos e nos faz pensar”.
Esse “a quem possa interessar” me
pareceu bastante curioso. Ora, quem se interessaria por um caderno velho,
empoeirado, cheio de anotações à mão, velhas, sobre livros velhos? Quem
perderia seu precioso tempo lendo todas essas coisas sem graça, de um sujeito
que talvez não tivesse o que fazer?
Depois de uma releitura, de buscar na
memória coisas do passado, concluí que a ideia era realmente que um de meus
filhos se interessasse pelas anotações, que sonhasse o que sonhei, que vivesse
o que vivi, que deixasse a literatura transportá-lo para vidas que não poderá
viver. Ou talvez tudo isso fosse simples balela, uma espécie de estratagema. A
real intenção talvez fosse de que um velho autor de cabelos brancos, um dia
resgatasse coisas interessantes de páginas já amareladas pelo tempo e
transformasse tudo em algumas crônicas.
Nesse viver a vida dos livros, lembrei de
uma frase do Rodrigo Lacerda, que, por sinal, não está presente no caderninho,
mas que não me impediu de agora lembrar, desafiando a tal “fraqueza de memória”
que esse jovem incipiente de 2004 parecia profetizar:
“A
principal utilidade da literatura é aplacar a sensação de que a vida é muito
estreita. A literatura me transporta pra vidas que eu sei que não poderei
viver”.
Talvez fosse essa descoberta a essência
de toda a ideia num plano geral.
As anotações (e agora quem fala é um
quarentão um pouco mais experiente e vivido) são ricas e valiosas (talvez um
quarentão confiante?), e merecem ser compartilhadas (confiante demais?).
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