NÃO HÁ LUGAR PARA MISÉRIA >> Carla Dias >>


Está frio? Está frio.

Descobre o corpo daquele e daquele e daquele outro, que eles não têm direito de ser neste lugar. Para ser, aqui, é preciso mais do que essa balela de não ter como ser quem seja. É preciso abrilhantar e não mostrar a indecência dessa miséria. E nem adianta dar desculpa, porque se vive onde bandido vive, é bandido também. Tudo da mesma laia.

Espalhe-os, que assim fica mais fácil de esconder a existência deles. Vamos acertar o tom dessa vitrine. Tem de ficar digno de passarela.

Sim, está frio. Inverno nem chegou, mas a conversa fiada se antecipa. Direitos de quem mesmo? Humanos? Esse pandemônio criado para dificultar o trabalho de quem busca o justo, assim como manter tudo lindo, maravilhoso. Vai até ali, enxota aquele outro, que ele está atrapalhando a melhor vista da rua. Esses obstáculos nos fazem gastar tempo, mas vai valer a pena, porque a vitrine vai ficar um luxo só.

Não entendo esse melindre todo. Não era limpeza que eles queriam? Não era polícia prendendo bandido? Nem tente me convencer de que entre eles há inocentes, porque todo mundo tem chance nessa vida. A meritocracia está aí para provar isso. Faça com ela o que bem entender e aceite as consequências. Essas figuras aqui escolheram seu destino.

Tire aquela criança catarrenta dali, porque pode ofender os novos transeuntes. Criança catarrenta não combina com nossa campanha publicitária. Criança catarrenta e pretinha, então, é escolher jogar dinheiro fora. Tem a ver com racismo, não, viu? Nem tente botar culpa. É uma questão de público-alvo. É preocupação legítima.

Pede para a senhora ali conter o grito? Será que ela não vê que estamos trabalhando para tornar este um lugar digno? Lugar precisa de chance de se tornar digno, minha senhora. Portanto, deixe-nos trabalhar e trazer requinte para esse espaço, antes ocupado por desocupados e bandidos. O lugar merece tal cuidado.

Requinte é item da cesta básica social, não vê? Pense bem... As cidades mais lindas desse mundo são requintadas. Traremos para cá o melhor do melhor, o manjar. Só que, antes do trabalho árduo de deixar este lugar uma beleza, digno de recepcionar políticos, líderes religiosos e celebridades, precisamos que a senhora cale seu grito, porque ele é muito injusto. É claro que pensamos nas pessoas como a senhora. Óbvio que trabalhamos para pessoas como a senhora. Mas o problema é da senhora, quando se trata de não ter para onde ir. Veja bem, o espaço é público, só que não para a miséria. A miséria que a senhora carrega é letal para a evolução que planejamos para esse lugar. E os hotéis? Ah, serão cinco estrelas.

Está frio, a senhora está certa. Vou para casa me esquentar com um chocolate quente.

Como? Ah, não... Tenho nada a ver com o fato de a senhora não ter chocolate quente em casa. Oi? Ah, também não tenho nada a ver com a senhora não ter casa ou para onde ir. O que sei é que essa vitrine tem de ficar deslumbrante. Então, retire-se, minha senhora, que a sua miséria, eu já disse, não cabe mais neste lugar.

Imagem: Las Parcas © Francisco de Goya

Comentários

Albir disse…
A gente já espera mesmo isso de certos governantes. O que dói mais são os aplausos. Os próximos aplausos serão para linchamentos.
Carla Dias disse…
Está cada vez mais difícil de não entrar numa discussão, em vez de uma boa conversa. O entendimento anda raro, Albir, e, infelizmente, é ele que coloca a casa em ordem.

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