MARIALMA, MEU AMOR >> Zoraya Cesar

Querida Filha, razão do meu viver, luz da minha alma, se você está lendo essa carta é porque, por fim, consegui libertá-la. 

Você sempre foi o Amor da minha vida, e agora será, também, o da minha morte. Eu não poderia ser mais afortunado em tê-la trazido ao mundo, e em tê-lo deixado por você. 

Chore por mim, mas não sofra muito. Estava desenganado, só me restariam alguns meses de vida, ao final dos quais ficaria preso a uma cama. Aí, pensei, a ficar acamado e inútil, não seria melhor morrer de uma vez? Já plantei árvore, já escrevi um livro, já tive uma Filha, você, um Anjo que Deus, por descuido, deixou vir à Terra. O que mais posso querer? Decidi que não me agarraria a um fiapo de existência, como um Ebenezer Scrooge ao dinheiro. 

Peço perdão, minha Filha, pela monstruosa mãe que eu te dei. Fui seduzido pela personalidade forte e envolvente daquela sereia maldita. Ela engravidou e, com isso, vi-me obrigado a casar. Em pouco tempo, percebi que havia caído numa armadilha preparada pelo próprio Asmodeu. Sua mãe - como você bem sabe por dolorosa experiência própria – tinha por missão na Terra infernizar, maltratar, humilhar a existência de todos os que estavam sob seu poder. E aquela enviada do demo disfarçava tão bem que o resto do mundo acreditava que ela era a essência dos anjos em forma de gente. Essência dos anjos caídos, isso sim. Nós que o digamos, né minha Filha?

Querida Marialma, carrego a culpa de não ter evitado que aquela nauseabunda tratasse a própria filha feito um pano de chão, com todo o descaso e perversidade de que era capaz. E como era capaz! Sei o quanto você sofria, mas eu, fraco, sempre trabalhando muito, pouco pude fazer. Me perdoe. 

Até pensei em me separar, mas temi perder sua guarda. A pestilenta conseguiria convencer até um frade de pedra que ela era uma mãe maravilhosa, que você era perturbada e mentirosa, e, eu, um crápula, desamoroso e desleixado, que mal parava em casa por conta do trabalho. Ademais, ela ameaçou mudar de país, sumir com você... Acredite, ela faria isso. Como suportar ver o sangue do meu sangue, a pessoa mais importante da minha vida, completamente à falta de mercê daquela emissária do Hades? Jamais! 

O mundo pensa que somos uma família normal e feliz. E, seguindo nossa farsa, estamos aqui, nas Cataratas do Niágara, por exigência da lazarenta - nunca tive forças para enfrentá-la, infelizmente. Esperava que você completasse 16 anos para poder me separar e levar você comigo. Mas a gravidade da minha doença me surpreendeu antes.

Sei que, depois de morto, a situação vai piorar. Ela vai te infernizar ainda mais a existência, com seu bafo pútrido de enxofre que a tudo empesteia. Vai ficar com todos os meus bens e gastar tua herança, te deixar na pobreza. Aquela jararaca é capaz de tudo. 

Por isso, minha Doce Filha, vou aproveitar o passeio que faremos às Cataratas para matar a nós dois, a mim e àquela desnaturada (que nunca, jamais, soube o significado da maternidade, zarapelha dos infernos). Diluí na garrafa de água que ela sempre leva nos passeios o sonífero que toma para dormir. Quando chegarmos às Cataratas ela já estará grogue. Será fácil jogá-la lá de cima, tanto mais que estaremos agarrados - como se eu a estivesse segurando, tudo parecerá um terrível acidente. Não se preocupe, minha Filha, a doença não me deixa sentir dor e, sendo paraquedista, altura é algo que não me mete medo. 

Eu ia morrer, mas não ia deixar minha Filha nas mãos
daquela megera desalmada.
Eu ia morrer. Mas minha mulher ia comigo.
Não se preocupe com nada, Filha de minha Alma. Arranjei tudo. Você vai ficar com sua Tia Hope, que te ama demais e sempre me criticou por não tomar uma atitude de macho.  

Minha Princesa, esse seu velho pai nunca te pediu nada, mas imploro que, se você, como sua Tia, virar espírita, por favor, nunca peça para eu baixar em algum terreiro. Quero descansar em paz. Se quisesse trato com os vivos não teria morrido. De onde quer que eu esteja, estarei velando por você. E cuidando que aquela vaca nunca mais te perturbe.

Seja feliz, minha Filha, Marialma, meu Amor, agora livre daquela cramulhona que nunca foi mãe na vida.

Com Amor, seu Pai.



Foto:sheldonleonard in Pixabay


Comentários

Unknown disse…
Esperava um final mais catastrófico, do tipo que a filha bebia o sonífero sem querer e caía sozinha nas cataratas kkk
Vai ter resposta? Uma carta da mãe direto do além? Adoro desdobramentos!
Marcio disse…
Perdoe a obviedade, mas seu texto é muito bom.
Desperta curiosidade nos leitores, sobre pontos que ficam em aberto.
Eu, por exemplo, gostaria de mais informações, em terceira pessoa, sobre a Marialma.
Ela leu a carta? E como reagiu ao gesto do pai? E se ela não concordasse com a opinião do pai sobre a mãe?
Parabéns à autora, por mais essa demonstração de firmeza de estilo e precisão descritiva.
Anônimo disse…
Faz a gente pensar... afinal o pai fez um bem ou um mal? Podia ter agora o conto do ponto de vista da Marialma
Albir disse…
Que beleza de nome: Marialma. Concordo com o Anônimo, com esse nome ela deve ter algo a dizer.

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