DIANTE DO TUDO >> Carla Dias >>


É tudo para ele. O próprio não consegue acreditar e se mantém no lugar, punhos cerrados, coração acelerado.

Tudo para ele.

Para quem viveu com mais nada do que a maioria, impossível não se sentir assustado. É muito tudo para um nada recorrente. É muito tudo para se aceitar sem susto, desconfiança, a sensação de desmerecimento.

Mas é tudo para ele.

Quem tem vivido problema a problema, resolução a resolução, abandono a abandono. E que se apressa a resolver o simples, porque sabe que o complexo toma tempo, saúde e requer paciência turbinada. Sem contar a colaboração rareada de outros.

Aprendeu muito cedo a contar desgraças. Nem pense que por isso se tornou um lamentador. Mas não foi por iluminação espiritual, superação, ou qualquer termo que se use para se escancarar, em prol do marketing sensacionalista, quem sobrevive à miséria e a contínua humilhação à própria existência. Não se tornou lamentador porque acreditava que o futuro lhe reservava felicidade. Ele escolheu não se tornar lamentador. Evitou expor suas auguras para dar chance às mínimas oportunidades de um passo adiante.

Nunca imaginou que seria assim, tudo para ele. Almejou um pedaço, um canto, uma fração disso. Sonhou com menos do que contempla no momento. Agora, sente-se estranho. Na verdade, experimenta o novo, o que sempre causa estranheza, independente da natureza do sentimento. É a primeira vez que tudo é para ele.

Enquanto a sua volta os poucos e fiéis amigos dizem palavras de alegria, ele só consegue se escorar nas lembranças daqueles nadas. Não consegue extirpá-los para se entregar ao assombro de ser tudo para ele. Mas sabe que tem de ser assim. Não nasceu para o esquecimento ou para a negação de sua trajetória, tampouco para minimizar o que as dores lhe ensinaram. Foram elas que o catequizaram sobre importâncias. Mas não é de se apegar à autopiedade, não quer ser possuído pela nostalgia das lamentações, apenas por não saber como se comportar diante de tamanho tudo.
É tudo para ele. Tudo dele.

Demora-se num sorriso bobo, de menino diante do sorvete preferido, escolhido durante os comerciais de televisão, e que irá experimentar pela primeira vez. Está a um passo de mudar o ritmo de sua vida.

Os amigos e suas gargalhadas de celebração. Aqueles que o aceitaram carrancudo, silente, arredio. Eles se deram ao trabalho de conhecê-lo, ao que ele será grato pelo o resto de sua vida, porque acredita que não há generosidade mais bonita. Aventura-se a sorrir aos seus, os cabelos meio desgrenhados, que a ventania canta em sua homenagem.

Quem diria que ele, o detentor de nadas, conseguiria tudo.

Dá um passo adiante. Sente-se pronto para abraçar o seu tudo. Um tudo que cabe em espaço tão pequeno, porém ocupa toda sua alma.

Qual é o seu tudo?

Imagem: The Entire City © Max Ernst

carladias.com

Comentários

Zoraya disse…
Essa pergunta me deixou insone, Carla!
Albir disse…
Só sei que você me convenceu a celebrar junto com ele. O que quer que o tudo seja.
Carla Dias disse…
Zoraya, espero que já tenha reconhecido seu tudo e ganhado uma bela noite de sono. ;) Beijo.

O tudo de cada um, Albir... É um mistério. Mas acho sempre interessante celebrar o tudo alheio, quando há generosidade envolvida. Beijo.

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