SACOLAS REUTILIZÁVEIS>> Carla Dias >>
Vou apresentar a vocês uma moça arretada. Veio de lugar nenhum, vai sabe Deus aonde. Apesar da falta de rumo traçado, é das mais sábias quando se trata de decidir sobre o que seja. Claro que isso significa que ela dá com os burros n’água com mais frequência do que uma biografia bem polida suportaria. Ainda assim, avexa-se de jeito nenhum, porque essa loteria que é a vida jamais contará com a falta de participação de sua pessoa.
Sua pessoa, melhor esclarecer, é uma pessoa que não oferece informação a quem não lhe encanta. Falar sobre ela sempre pede um tanto de floreio, que poucos são os que sabem dela o suficiente para dizer verdades. Por isso mesmo são muitas as lendas que incluem sua pessoa, quer dizer, personagens inspirados em sua pessoa, porque posso garantir que ela não se transforma em jaguatirica às quintas à noite, depois da novela, não fala a língua das águias, não vive de beber água de chuva, somente em dias de chuva. Ela não dança nua para lua cheia, mas nesse caso, ela já considerou transformar essa invencionice em uma provocada verdade.
Talvez você se interesse em saber que ela trabalha dezoito horas por dia, seis dias por semana e sustenta cinco filhos. São cinco filhos que não são seus, mas dos quais decidiu cuidar, já que ninguém dava conta do recado. Passou por eles, ali, sempre sentados à porta do supermercado, durante meses, antes de se decidir sobre assumir papel de destaque na vida deles. Demorou-se na decisão, não por achar que eles não mereciam, mas porque tinha de ter certeza de que não os deixaria na mão, no meio do cuidado. Foi assim que arrumou um segundo emprego.
Malana, Inocêncio, Patrício, Lidiana e Marinete embarcaram na jornada oferecida pela mulher, embalados pela promessa de que, em um futuro que ela tornaria possível, eles poderiam entrar no supermercado e sair com sacolas cheias... Sacolas reutilizáveis, claro. Até lá, ela mesma sairia do supermercado com sacolas cheias para eles, contanto que eles apresentassem o boletim para ela acompanhar o desempenho deles na escola.
Aquelas crianças só conheciam a porta do supermercado. Tinham entre oito e quinze anos, viviam por ali pedindo moedinha, comidinha, biscoito com recheio. Às vezes, cantavam uma música de quem não se sabe de onde veio, sobre um moleque que se tornou o rei do mundo. Os mais jovens, com suas vozes miúdas, erravam a letra de um jeito gracioso. Quem prestava atenção, acabava caindo na gargalhada. Mas não eram apenas gargalhadas que eles ganhavam com frequência. Já teve pontapés, palavrões, sermões, orações e até puxões de cabelo.
Negociaram rapidinho com a moça, que só de pensarem em ter sacolas cheias de comida, bom, isso já os assanhava que só. Juraram fidelidade ao acordo e, a partir daí, considerou-se a mãe dos filhos de outra. Não queria tirar direito de ninguém, mas a deixava feliz oferecer alguns àquelas crianças.
E o cenário mudou.
Veja bem, Patrício, o mais velho da turma, atrasadíssimo nos estudos, tomou a frente da organização do tal projeto. Garantiu que, na semana seguinte, a mulher da promessa tivesse motivo para manter a tal de pé. As crianças apareciam todos os dias, depois da escola, com seus cadernos, aqueles que a benfeitora deu a eles. Ele até fez com que cada um deles, inclusive o próprio, aprendesse uma palavra nova para dizer para a mulher.
Patrício confessou a ela, eventualmente, que fez aquilo para poder tirar o melhor proveito possível da situação. Ele não poderia prever o que se seguiria. Na verdade, não tinha nem repertório para que sua imaginação fosse tão longe.
Ela tem cinco filhos para criar. No final da tarde, antes de correr para o segundo emprego, passa pelo supermercado para saber da criançada. Malana e Inocêncio correm e se jogam nos braços dela. Os mais velhos são menos ousados. Ficam em pé em frente a ela, esperando o início da conversa. Ela não se faz de rogada, que não veio ao mundo para ter medo de comprometimento emocional. Vai logo beijando os arredios, que, em cinco minutos, já falam pelos cotovelos.
Em alguns meses, Malana lê algumas histórias, Inocêncio se apaixonou por aprender tudo que remeta à tempestade, Lidiana faz planos de se tornar doutora, enquanto Marinete se mostra resoluta sobre aprender inglês. Patrício dança de acordo com a música, não sabe quem se tornará, diante dessa aventura, mas confessa a sua benfeitora que nunca viu os irmãos tão interessados pela vida.
A tia cuida deles como pode, que já tem certa idade e ainda umas dores no corpo que nunca param. Não preciso detalhar a miséria, então a resumo assim mesmo: uma vida de cão. Mas ela é senhora de bom coração, e essa é a sorte da criançada. Foi Inocêncio que organizou o “trabalho” na frente do supermercado. Entre um resmungo e uma declaração de que não passavam de um bando de vagabundos, ele diz que recebeu muita ajuda e muito carinho.
Quem passa em frente ao supermercado, hoje vê uma cena bem diferente. As crianças e seus uniformes, cabelos penteados – Lidiane anda sempre com um pente para garantir o alinho –, sentados no chão e de cara com os cadernos, dedicados aos estudos. As pessoas falam com elas, querem saber o que fazem ali. Patrício explica o acordo com o maior orgulho, porque foram escolhidos para essa mudança.
Patrício não se cansa de agradecer à mãe da situação. E ela, que aprecia muito quando a vida dá uma volta na má vontade alheia, sorri bonito e alega que mais do que ela faz por eles é o que eles fazem por ela.
A mulher continua com dois empregos e sustentando cinco filhos. Mês passado, recebeu o boletim da escola e foi com os olhos aguados. Qual mãe não se orgulharia de filhos tão dedicados?
No dia em que Patrício entrou no supermercado e saiu com sacolas – as reutilizáveis, claro -, elas cheiinhas, sentiu-se tão emocionado que teve de se sentar na escada e chorar, antes de tocar para casa. Seus irmãos não precisam mais pedir comida, agora se dedicam exclusivamente aos estudos. Estudando, ele aprendeu tantas coisas sobre as quais não tinha ideia, que até serviu para se tornar empregado. Agora ele cuida da família, e junto com a mãe de escadaria de supermercado, garante que os irmãos possam ter um futuro no qual seja inaceitável ser tratado como escória do mundo.
Eu disse que apresentaria a vocês uma moça arretada. Ela veio de lugar nenhum e acabou aqui, mudando o destino daqueles que não tinham ideia de onde poderiam chegar. Ela defende o uso de sacolas reutilizáveis e o direito do ser humano de não ser descartado, como são aquelas sacolas plásticas que embrulham o estômago do mar.
Ela adora sacola de palha de milho e pessoas.
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O mundo é mesmo uma lindeza, não? Apesar de...
Beijos!